13 dezembro 2013

Das dúvidas

Fotografia de JMAC, o homem de Azeitão


As minhas dúvidas formam um sistema.

No seu livro Atlas do Corpo Humano e da Imaginação (Caminho, 2013), Gonçalo M Tavares cita Wittgenstein na frase que encima este texto. O assunto interessa-me. Vivemos, metaforicamente, numa época de pontos de exclamação, não de pontos de interrogação. Nas reuniões, nos encontros sociais, nas conversas, parece não haver lugar para a pergunta ou para a dúvida. Não parecemos interessar-nos muito, nem pela vida dos outros, nem pelas grandes questões que nos poderiam interpelar interiormente. Optamos por afirmar, como se perguntar encerrasse uma dimensão de fragilidade intelectual que nos envergonha exibir. Ou uma coscuvilhice pelas vidas alheias que fingimos não ter, sei lá eu...

Escreve Steiner, ainda referido por Gonçalo M Tavares: não há, na verdade, muito a ganhar por perguntar, mais uma vez, qual a quilometragem até à lua ou qual é a fórmula para fazer ácido clorídrico. Nós sabemos as respostas. (…) Não há respostas terminais, resolubilidades últimas e formais para a questão do sentido da existência humana ou do significado de uma sonata de Mozart ou do conflito entre consciência individual e condicionamentos sociais.

O que pode ainda descobrir aquele que sabe sempre as respostas? Não falo de informação, mas de conhecimento. Não interessa tanto o nosso produto interno bruto ou que propostas se fazem para baixar o iva da restauração, por mais importantes que sejam estes temas. Saber isso é saber o que sabem todos os outros, é saber o que está disponível nas enciclopédias ou nos jornais da especialidade. O essencial, afirma ainda GMT, é o que nunca termina de ser respondido. Por isso temos de continuar a perguntar, como uma actividade que tende para o infinito.

Noutro plano da nossa existência, estou ingenuamente certo do que digo: a grande partilha entre as pessoas faz-se por via da pergunta, da dúvida, da inquirição, da reflexão em voz alta. Perguntar e ouvir são actividades emocionais, mais do que cerebrais porque, em vez de indicarem um caminho, convidam o outro para uma caminhada conjunta. Mais do que saber todas as respostas, é importante fazer todas as perguntas. E só o sábio (ou aquele que a isso aspira) pergunta, porque só o sábio reconhece a sua ignorância.

Hesitar é um sinal de fraqueza nos dias que correm. Precisamos de afirmar à saciedade (e também à sociedade) que sabemos o que queremos e para onde vamos. Não pedimos ajuda, não queremos uma opinião, não desejamos uma parcela ínfima do coração ou da inteligência alheia para nos indicar uma luz. Afirmar é, talvez, uma das palavras do ano. Ou da década. Ou, quem sabe, da geração. Porque não há quem não o faça, sem saber que afirmar por sistema é não sair do mesmo sítio, é não circular em redor do que não tem resposta, do que não está ainda decidido, do que ainda nos confronta (…).

GMT cita Steiner que explica uma ideia fundamental de Heidegger: a errância, a peregrinação em direcção ao que é digno de ser questionado, não é aventura e sim voltar-a-casa.

JdB

PS: alertam-me que a profusão de citações (quatro…) pode conferir ao texto uma presunção bacoca. Em minha defesa alego que estou a ler o livro do GMT e que, no espaço de duas ou três páginas, ele cita estes filósofos. Optei por inclui-los porque as frases compunham o meu texto. Em bom rigor, nunca li Heidegger ou Wittgenstein.
   

3 comentários:

Acc disse...

A meio do texto veio-me á memoria a sala de aula e a professora de ponteiro afiado interpelando meninos atentos e ansiosos
- quem sabe que levante o dedo!
Não foi assim que todos crescemos, a mostrar ou a ver o que e quem sabia? Podemos então ser perguntadores, quando desde cedo desenvolveram e valorizaram o nosso poder de certeza e resposta?
Somos vítimas e carrascos de um sistema que nos ultrapassa.
Obrigada pela belíssima reflexão.

Anónimo disse...

Perguntar é precisar, haja humildade na carência e orgulho no pedir.

Anónimo disse...

Excelente texto.
Abr
fq

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