12 junho 2014

Textos dos dias que correm

«Então João Gouveia abandonou o recosto do banco de pedra, e teso na estrada, com o coco à banda, reabotoando a sobrecasaca, como sempre que estabelecia um resumo:
- Pois eu tenho estudado muito o nosso amigo Gonçalo Mendes. E sabem vocês, sabe o senhor padre Soeiro, quem ele me lembra?
- Quem?
- Talvez se riam. Mas eu sustento a semelhança. Aquele todo do Gonçalo, a franqueza, a doçura, a bondade, a imensa bondade, que notou o senhor padre Soeiro... Os fogachos e entusiasmos, que acabam logo em fumo, e juntamente muita persistência, muito aferro quando se fila à sua ideia... A generosidade, o desleixo, a constante trapalhada nos negócios, e sentimentos de muita honra, uns escrúpulos, quase pueris, não é verdade?... A imaginação que o leva sempre a exagerar até à mentira, e ao mesmo tempo um espírito prático, sempre atento à realidade útil. A viveza, a facilidade em compreender, em apanhar... A esperança constante nalgum milagre, no velho milagre de Ourique, que sanará todas as dificuldades... A vaidade, o gosto de se arrebicar, de luzir, e uma simplicidade tão grande, que dá na rua o braço a um mendigo... Um fundo de melancolia, apesar de tão palrador, tão sociável. A desconfiança terrível em si mesmo, que o acobarda, o encolhe, até que um dia se decide, e aparece um herói, que tudo arrasa... Até aquela antiguidade de raça, aqui pegada à sua velha Torre, há mil anos... Até agora aquele arranque para a África... Assim todo completo, com o bem, com o mal, sabem vocês quem ele me lembra?
— Quem?...
— Portugal.»

Eça de Queiroz, "A Ilustre Casa de Ramires" (final)

***

O melhor que temos para o futuro é tanta humanidade acumulada

Transcrevi acima o final d’A Ilustre Casa de Ramires, onde Eça nos resume como só ele o soube fazer. E ali está de tudo um pouco, desde a «constante trapalhada nos negócios» sinal frequente de lhes ligarmos pouco, ao novo «arranque para a África», ou para outros lugares que sejam, mesmo aqui. E o «herói» a aparecer seremos todos.
Nós somos realmente muito antigos e nada nos predestinava a ser fosse o que fosse. Nem terra, nem gente, nem língua, nem coisa alguma que nos recortasse de outros. Por isso, o que temos de original é sermos realmente muito antigos, sem razões de origem para o sermos. Dito doutro modo, é perdurarmos. Quase contra tudo, quase contra todos e quase contra nós, por vezes.
Se há «enigma português», é este mesmo. Basta e sobra, por ser quase inédito. Também para nos alimentar a esperança, que é o que sobeja dos impossíveis passados, para os impossíveis futuros.
Nunca é demais exercitar a memória coletiva, que vai na mesma onda. Esta ponta da Península, este extremo ocidente, recolheu junto ao mar migrações sucessivas que aqui tiveram de se deter, da pré-história ao século XV. Camadas meramente sobrepostas, ou misturadas no melhor dos casos.
Por isso já houve quem nos identificasse como norte-africanos aquém do estreito, ou semitas, ou gregos no litoral, ou celtas depois, ou arabizados ainda, ou o que mais viesse à memória e, sobretudo, à imaginação. Com um pouco de boa vontade, a toponímia, algum monumento, até as feições e a cor do cabelo deste ou daquele têm dado para tudo. As modernas pesquisas genéticas irão mais seguras. Mas não é difícil concluir que alhures na Península e na Europa se podem fazer idênticas conjeturas, sem chegar a conclusões «portuguesas».
Mais nossa será, creio bem, a insistência em nos descobrirmos diferentes, a catadupa de razões aduzidas, a incorporação – mais do que a originalidade propriamente dita – de mitos fundacionais e profecias de futuros garantidos. Visto por outro lado, tal elenco de explicações culturais esconde a inconsistência de outro tipo de fundamentos.
Porque isso somos, uma interessante realidade cultural, dando à cultura o sentido pleno de autointerpretação coletiva, interligando e projetando no presente e no futuro uma série de acontecimentos que fomos selecionando e transmitindo como «nossos».
 (...)
O melhor que temos para o futuro é tanta humanidade acumulada. E este é um futuro onde os outros também cabem, como nós caberemos com os outros, com aquela lucidez que só o tempo apura. Também para a Europa fitar o mundo com olhos portugueses, de mar a mar.
(...)

D. Manuel Clemente
 In O tempo pede uma Nova Evangelização, ed. Paulinas
 (retirado daqui)


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