09 março 2017

Da voz

Jorge cuidava-se. Não usava bálsamos pré ou pós barba, não exigia champôs especiais ou cremes que retardassem as rugas e rejuvenescessem a pele. E no entanto, cuidava-se. Lia amiúde, mas, sempre que possível, na língua original: ia a um ensaio académico, a um haiku bem traduzido, aos clássicos franceses, aos realistas portugueses, à poesia experimentalista. Não se podia inferir daqui falta de critério, mas cuidado, apenas, com a língua. Jorge privilegiava, acima de tudo, a arte de bem falar, que era a arma com que encantava as mulheres. Para todas tinha um galanteio educado, uma graçola de oportunidade, uma tirada a propósito. Dizia uma linha de um verso, uma ideia de um estudo científico, uma sextilha popular ou uma citação em francês. As mulheres derretiam-se, porque aliada à erudição havia uma voz bem colocada, radiofónica, potente sem ser metálica, doce sem ser lamechas. 

Jorge viveu assim anos a fio. Solteiro, fez da conquista decente e educada o seu hobby. Havia quem não cozinhasse gaspacho com tomate pelado; havia quem não colocasse caldos de legumes para intensificar o sabor. Jorge não perturbava casamentos, namoros, compromissos sérios. Respeitava idades mínimas e máximas e, se tivesse dificuldade em galantear senhoras com dificuldades auditivas, isso assentava na ideia de que as armas dele não tinham validade naquele terreno: como se cita um soneto a quem não o ouve, ou está sempre a inquirir "como?"; como fazer rir uma senhora que tomba a cabeça em permanência na procura de uma onda sonora que lhe penetre o ouvido da melhor forma...

Um dia, Jorge foi ao médico. Na semana seguinte era operado de urgência, um mês depois perdia por completo as capacidades vocais. Deitado na cama de um hospital, com um caderno ao lado e de olhos fitos numa parede onde o olhar dele não parava porque se estendia até ao infinito onde residem todas as nossas dúvidas, Jorge pensou na vida, nas senhoras, na métrica do fado ou na não métrica dos ingleses, em Flaubert, em Eça, em Walt Whitman ou nos russos. Pensou na conquista, na sua arma infalível que agora era obsoleta, inútil, desajustada. Pensou na voz que se esvaíra e, com isso, a parte mais substantiva da sua cadeia de valor. Como explicar, com um caderninho na mão, que a sua voz era assim, a entoação era assado, a projecção era cozido? Como conquistar terreno alheio sem a password que abre todas as portas, que facilita todas as entradas?

Jorge sorriu e, nesse mesmo instante, o seu olhar deteve-se na parede em frente, naquele ponto fixo, porém imaterial, onde assentam as nossas certezas, as nossas convicções, os nossos propósitos de curto prazo, os nossos desejos que se cumprem já já. Uma semana depois, ainda em convalescença, receberia a visita de Goreti, manicura jovem, solteira, vagamente estrábica e ruiva, com valência de voluntariado naquele hospital. Jorge, o homem para quem a voz tinha sido tudo e passara a ser apenas uma saudade, estendeu-lhe as duas mãos e sorriu. Uma hora depois, num fim de tarde modorrento de fim de Verão, ecoaria pelos corredores do hospital uma frase quase gritada, quase estremecida, quase indignada, quase satisfeita: senhor Jorge, senhor Jorge, veja lá onde põe as mãos.

Jorge olhou para as duas mãos com um vagar interessado. Aqueles alexandrinos eram bons, mas talvez prematuros...

JdB

          

1 comentário:

Anónimo disse...

Bom dia

Saúdo a «Lanterna Vermelha» que há em si. Espero que seja para retomar a série, parta pois de flor ao peito, em «busca do tempo perdido».

Obrigado

ATM.

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