23 março 2017

Vânia e as listas de Antonino

Como acontece quase sempre na história das famílias, antes de Antonino perceber já os pais de Antonino haviam percebido: numa viagem a Salamanca, quando o rapaz tinha 15 anos e revelava de forma clara, ainda que não acintosa (que neste caso se traduziria por uma precocidade enervante) uma queda para a pintura enquanto observador, Antonino quis visitar todos os museus e palácios da cidade onde esta forma de arte fosse preponderante. Contudo, não seguiu um critério geográfico, que consistiria em fazer troços pequenos do palácio A para o museu B; não seguiu um critério cronológico, ou de estilo, que passava por ir do mais antigo ao mais moderno, ainda que a inversa também fosse possível. Antonino seguiu um critério meramente numérico e crescente no mapa da cidade - de 1 até n, sendo que podia deslocar-se a uma ponta da cidade para ver o séc. XV e, seguidamente, deslocar-se à outra ponta para contemplar o séc. XXI, desde que estes museus e / ou palácios específicos fossem numericamente seguidos. 

Quando entrava no museu ou palácio, Antonino pedia imediatamente um catálogo dos artistas expostos e, num ápice (havia uma espécie de queda natural para a coisa, o que a tornava rápida e pouco fastidiosa, ainda que preocupante) Antonino seleccionava os artistas começados por A - e era esses que via em primeiro lugar, seguindo depois para a letra B. A rotina repetia-se até Z, sendo que de permeio havia o W e o Y para engrossar as variáveis. Isso implicava - e esse facto não carece de explicação - subir escadas e descer escadas à procura do D ou do N, podendo viver com a desilusão de uma letra orfã e só, sem nenhum nome que lhe fizesse companhia.

Antes de Antonino perceber a obsessão, já os pais de Antonino haviam percebido a obsessão: eram os catálogos, os cânones, as listas (listas de tudo, mas também listas de listas, talvez mesmo listas de listas de listas). O inferno, não como temor, mas como lista iconográfica de torturas; a História de Portugal, não como um conjunto de grandezas e misérias, mas como uma lista de dimensão genealógica: A pai de B, que é pai de C, que é pai de D e de E, de quem nasceu o terceiro bastardo E3; o livro de linhagens de D. Pedro, conde de Barcelos, não como um documento medieval pioneiro, mas como uma lista prática de informações relevantes (por oposição à genealogia de Jesus, uma lista não prática, mas que também constava na sua lista de listas). 

Após o curso de História e uma pós-graduação em arquivismo na variante catálogo, Antonino seguira uma carreira de bibliotecário de autarquia, criando e recriando listas, imaginando ordenações, congeminando frequências e tendências, diversificando o rol de compras mensais tomando em consideração a ordenação alfanumérica de prazos de validade, número de fornecedores por distrito e lista de órgãos sociais com predominância da letra J. Vânia, deitada ao seu lado, tinha feito um curso de pintura, praticava ioga, meditação e voluntariado aos fins de semana num lar de idosos. 

Para eles era a primeira noite - uma noite chuvosa, ventosa, a levantar tudo pelo ar: folhas, papéis de jornal, cascas de maçã, passarinhos mortos e caídos dos ninhos, aromas de frango assado. Vânia tinha uma figura invejável, fruto de uma boa genética, que, quanto à alimentação, a rapariga ia a um cozido, a uma farófia, a uma léria ou a uma sopa da pedra, sem medo e sem remorso. Era alta, esbelta, vistosa sem ser exuberante, com uns olhos azuis de cortar a respiração e uma ligeiríssima e interessante assimetria dos dentes da frente. Antonino beijou-a com fervor carnal e paixão afectiva, porque não conseguia separar os sentimentos. Tocou-lhe com jeito e educação, elogiou-a com simplicidade e gosto. Pediu-lhe desculpa pela interrupção e, debruçando-se sobre a gaveta da mesa de cabeceira, olhou brevemente lá para dentro, retomando o afago, o beijo, o elogio.

Terminaram ofegantes, como o vento na rua que tudo transportava. Antonino fora fazer um chá de gengibre e limão e Vânia, debruçada sobre uma nudez que provocava inveja e perturbação, abriu rapidamente a mesa de cabeceira, vencida por uma curiosidade que só na mente dos mais perversos seria travestida de desconfiança. Na gaveta, lado a lado, encontrou uma lista de pintores com nomes começados por V e que faziam ioga e / ou meditação e / ou voluntariado e uma lista traduzida do indiano e intitulada catálogo de posições felizes para uma noite carnal. Encontrou, por fim,  a capa do livro Penitencial, de Martim Pérez, que abriu ao acaso. Se alguum se banhou en banho com as molheres e as vyo nuas e ainda a sua molher meesma, jajue dous dias em pan e augua

Antonino assomou ao quarto, precedido pelo aroma do chá, e perguntou-lhe: vamos tomar um banho? Vânia perguntou, sorrindo: gostas de pão e água?

JdB
        

1 comentário:

ACC disse...

genial,
Que bom ler este JdB

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