27 março 2017

Da santidade

Na semana passada o Papa Francisco aprovou o milagre que permite a canonização dos pastorinhos de Fátima, Jacinta e Francisco. É sobre isso que quero discorrer, não esquecendo a minha condição de católico.

A minha relação com os santos não assenta numa dimensão de devoção, mas de admiração. Isto é, não nutro devoção por Santo António de Lisboa, por São Judas Tadeu, pela santa das causas impossíveis que é a Santa Rita de Cássia, ou por S. Teresa de Ávila. Também não nutro, por isso, qualquer devoção por S. João Paulo II e, no futuro, pelos pastorinhos de Fátima. A minha relação com os santos é sustentada pela admiração que tenho pela vida que levaram, pelas suas qualidades e pelas suas fragilidades. Revejo-me na ideia de que um santo é um pecador que não desiste e desconfio das vidas absolutamente virtuosas. Admiro Santo Agostinho pelo seu pensamento e pela sua obra; admiro S. Bartolomeu dos Mártires pelo seu despojamento; admiro S. Maximiliano Kolbe pelo seu sacrifício (na sua proximidade com o martírio). Na mesma linha de pensamento, não sou devoto de Madre Teresa de Calcutá, sou admirador de Madre Teresa de Calcutá. Por outro lado, tenho alguma dificuldade de convivência com esta ideia dos santos como agentes de mediação ou de intercessão. Fará sentido eu rezar a S. João Paulo II para que este interceda junto de Deus para que eu seja como ele? Noutro sentido, por que motivo rezaria eu (ou não se reza com fervor) a S. João da Cruz ou a S. Nuno de Santa Maria? E porque não, já agora, a Santo Higino, Papa e Mártir, que a igreja celebra no meu dia de aniversário?

O registo da santidade, no sentido da canonização, é conferido pelo milagre.  Em termos formais, o milagre é um feito religioso insólito, que supõe uma intervenção especial e gratuita de Deus, e tanto é um sinal ou uma manifestação de uma mensagem de Deus ao homem, como uma chamada à conversão. Podem distinguir-se três classes de feitos milagrosos: 

  • aquilo que supera as forças da natureza, isto é, um feito que a natureza não poderia realizar (a ressurreição de um morto); 
  • aquilo que supera as forças da natureza, não pelo feito em si, mas pelo sujeito em que se realiza (o cego que vê, por exemplo); 
  • aquilo que supera as forças da natureza quanto ao modo (por exemplo, um doença curável num ano e que se cura numa semana).

Ao que parece, a canonização dos pastorinhos assenta num qualquer milagre (cujos pormenores não foram ainda divulgados) realizado numa qualquer zona do Brasil. Nuno Álvares Pereira foi canonizado com base, parece-me, numa senhora que não ficou cega quando azeite a ferver lhe entrou para os olhos. Que milagre é este? Devemos acreditar, sem qualquer desrespeito pelas pessoas em questão, que é assim que Deus intervém na vida do Homem? A canonização de Madre Teresa - cuja vida de entrega aos mais pobres de entre os mais pobres é, já de si, um milagre, para além de ser a prova viva e contemporânea da presença de Deus - está dependente de um acontecimento pequenino face à magnitude da vida dela? É por aqui que Deus se manifesta ou nos chama à conversão? E o milagre da entrega ao próximo é inferior a algo que por agora não tem explicação, mas que poderá ter daqui a 20 anos?

[Por outro lado ainda, nesta minha deambulação de não devoção aos santos (mas de admiração pelas vidas de muitos deles) não sou apreciador (a não ser do ponto de vista artístico) da estatuária religiosa que invade as nossas igrejas, e que deriva de costumes antigos de contar a história da nossa religião por via de imagens, como se fosse uma banda desenhada em 3D, porque o analfabetismo impedia as pessoas de ler a Bíblia.]

Não sendo um dogma de fé, nenhum católico é obrigado a acreditar que Nossa Senhora apareceu a três crianças em Fátima, há 100 anos. Eu acredito que sim, que houve qualquer coisa que se passou ali, naquele sítio, por um motivo que é insondável, que tem a dimensão de um mistério por descobrir. O milagre de Fátima não é a aparição de Nossa Senhora, mas o surgimento de Fátima como ponto de encontro do mundo crente ou espantado, como lugar geométrico de caminhos de conversão, de peregrinação, de desespero ou de agradecimento, de abandono a uma fé que pode transformar vidas ou consolar tristezas. Fátima é um espaço muito maior do que o recinto que encerra, porque é o somatório de todas as almas que ali estão, presentes ou à distância; é dos únicos locais do mundo onde todos falam a mesma língua e cada peregrino é irmão do peregrino ao lado, e cada peregrino chora e ri com o peregrino ao lado.

Não me interessa o milagre de que os pastorinhos terão sido obreiros no Brasil, porque isso não representa nada, na minha opinião. O milagre dos pastorinhos é terem sido os protagonistas, terem querido ser os protagonistas ou ter acontecido terem sido os protagonistas daquele acontecimento que gerou o milagre à escala planetária: Fátima, como ponto de partida ou como ponto de chegada para milhões de pessoas ao longo destes cem anos; Fátima como agente de transformação das nossas mãos, dos nossos olhos ou das nossas bocas; Fátima como altar do mundo, de onde nunca saímos iguais, mesmo que não percebamos a diferença. O resto é o resto, nada mais do que isso.


JdB  

3 comentários:

Anónimo disse...

Compreendo-o tão bem!

Acc disse...

Brutal.
Assim entendo tudo e aceito tudo.

Anónimo disse...

tanta clarividência tem a luz dos milagres, daí que não seja injusto subscrevê-lo no critério da admiração como S. JdB.

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