14 janeiro 2020

Do filme Dois Papas: o meu olhar

Janto com amigos. Das dez pessoas à volta da sala, nove são aquilo a que se chamaria vulgarmente (e algo disparatadamente) católicos praticantes. São pessoas de missa semanal, com militância passada ou presente em movimentos da igreja, com desejos de pertença completa. São católicos discernidos, com um olhar genericamente discernido (embora por vezes pessoal) sobre a Igreja Católica e sobre o que gira à volta dela. 

Fala-se no filme Dois Papas, que passa no Netflix. De entre o grupo há quem tenha visto e há quem não tenha visto. Há quem tenha gostado e há quem não tenha gostado, ou não tenha gostado de um aspecto mais específico. De entre as críticas negativas talvez realçasse o seguinte:

- o excesso de ligeireza do filme;
- a clara preferência do realizador pelo Papa Francisco, muito à custa de Bento XVI; 
- o engano assente na frase "baseado em factos reais";
- a ilegitimidade de se fazer um filme sobre duas pessoas vivas, sem que lhes tenha sido pedida autorização;
- "a importância do Papa que não se compadece com exercícios de ficção cinematográfica".

Sou dos que viram e gostaram do filme, pese embora subscrever claramente as três primeiras críticas referidas acima: há ligeireza na abordagem à vida de Bento XVI, aos temas tratados; a sustentação de que são factos reais é um exercício impossível, apesar de qualquer um dos papas ter proferido alguns daqueles pensamentos numa dada altura. Porem, apesar disso gostei do filme: não achei insultuoso, não achei que denigra claramente a imagem de Bento XVI; vi-o como uma obra de ficção (muito bem filmada), não como um documentário; fixei uns pormenores, não dei importância a outros.

Numa leitura pelas críticas ao filme feitas por gente da Igreja, ou ligada à Igreja, encontra-se de tudo: gente que gostou e gente que não gostou, o que parece dar a entender que, mesmo nos meios católicos equilibrados, não há unanimidade, a não ser na representação desigual de ambos os Papas. Muitas críticas referem a inverosimilhança de algumas cenas, o que é verdade. Talvez o problema não esteja então só no filme, mas no facto de se ter vendido a ideia de que ele se baseava em factos reais. Se virmos o filme como uma espécie de documentário, ele está pejado de disparates. Mas se o virmos como uma obra de ficção talvez ali vejamos coisas interessantes, como a humanidade de ambos, visível na forma como se entusiasmam com o futebol, na imperfeição da obra tocada ao piano, ou no modo como se relacionam com Deus. Não sei, em bom rigor, se Bento XVI e Francisco se confessaram um ao outro nem isso me interessa muito, reconheço. Prefiro demorar-me nas dúvidas interiores que revelam, um em relação ao problema da pedofilia na igreja, outro na sua interacção com a ditadura de Videla. Interessou-me a dimensão da fragilidade humana, mais do que a evidência de uma atitude correcta. Não vi o filme como um panfleto, mas como uma janela que se abre sobre dois homens de carne e osso; vi o filme, talvez, como uma metáfora sobre a condição humana.

***

Num âmbito ainda relacionado com o filme, amigo que prezo afirmou e escreveu-me: "(...) nem consente esta tendência tão tolerada de a Igreja Católica ser tema de domínio público, sobre que todos opinam e botam sentença."

Tenho a dizer que, acima de tudo me espanta o desejo interminável de pessoas que, nada tendo a ver com a Igreja, estarem sempre de olhar atento e crítico sobre a Igreja; indigna-me que na primeira página dos jornais venha o mal que a igreja faz, mas não o bem que pratica; exaspera-me este escrutínio permanente, desequilibrado e persecutório. O que me separa, talvez, da frase deste meu amigo é que a Igreja não tolera tendência nenhuma, porque não está nas mãos da Igreja agir contra esta tendência. 

A Igreja vive num tempo moderno, de twitter e instagram, de whatsapp e notícias ao minuto. Este é, também, o tempo da Igreja - tempo esse a que não pode fugir. O que lhe resta, para além de tudo o que já faz de forma fantástica? Trabalhar o melhor possível, corrigir as más práticas internas, emendar a mão onde deve emendar. A nós, católicos - e, portanto, igreja - espera-se a militância e a defesa. Na minha opinião, fazer um filme - este filme - sobre o Papa (ou sobre dois papas) não fere a dignidade da Igreja nem dos personagens, porque não há insulto e porque o papel de ambos na História do Mundo está muito acima de um filme. A dignidade da Igreja, para além da sua dignidade inerente enquanto Estado, está na pureza com que segue e põe em prática os ensinamentos de Cristo: a atenção aos pobres e necessitados, a luta incansável pela justiça social, o castigo inequívoco de práticas indignas.

Vivemos um tempo de exposição mediática, quer queiramos quer não. Se fizermos o que devemos fazer, e o fizermos bem, não há filme que nos destrua nem diminua - mesmo que diga alguns disparates.

JdB      
    

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