25 julho 2012

Reedições e efemérides


Este estabelecimento completou, no passado dia 16, quatro anos de existência. Nasceu numa fase de mudança - pessoal e geográfica. Poucos dias depois embarcava para o Zimbabwe onde ficaria dois meses, naquela que foi a viagem que mais me marcou, por ser o tempo que era e por ser África, que eu praticamente não conhecia. 
O texto abaixo, intitulado A Filha do Tenente Francês, foi das minhas primeiras experiências neste tipo de croniquetas. Agora que faço o paredão diariamente volto a encontrá-la, diligente e fervorosa no seu terço matinal.
Obrigado a todos os que por cá teimam em passar, seja como colaboradores, comentadores, simples transeuntes. A moderna psiquiatria explicará o que vos motiva...

JdB

***

Era atleta especializada nos 20km marcha, fascinada pelo gingar do corpo, pela regra obrigatória do pé sempre assente no chão, pelo olhar - que alguns diriam quase esgazeado - com que se vislumbrava a meta. Herdara do pai, militar na Legião Francesa, o gosto pela disciplina, pelo espírito de sacrifício, por aquelas três palavras - Legio Patria Nostra - que o comoviam como mais nada.

Um dia, ao 18º quilómetro, num ritmo seguro e de campeã, assentou mal o pé. Deu um grito de dor, provocado por um ligamento que se estirava numa rotura sem retorno e por uma alma premonitória que lhe anunciava o fim da carreira. Tudo se consumou ao quarto dia, quando lhe disseram que podia guardar o equipamento, se isso não a corroesse de saudades. Falaram-lhe também de um possível coxear em permanência, resultado da gravidade da situação e da ausência de tratamentos modernos.

Foi então que conheceu um fisioterapeuta português com um coração de ouro e umas mãos de escolhido que, numa persistência que envergonharia qualquer atleta de alta competição, lhe recuperou o pé, eliminou o coxear, ensinou a virtude do toque em zonas para lá do tornozelo.

Cruzei-me com ela hoje no paredão, como já me tinha cruzado ontem, há dois dias, na semana passada, no mês de Junho. Posso garantir que o ritmo está cada vez melhor, o terço que percorre com as mãos agita-se mais, o mexer dos lábios vai num frenesim crescente. Apostaria que as suas orações acabam ao quilómetro treze quando na 2ª feira acabariam ao oito - sinal de que a velocidade se aproxima do que é possível, considerando a entorse de há 35 anos.

Quando chega a casa encontra o fisioterapeuta a esfregar as mãos - não só de contentamento, mas para as aquecer, porque ela se queixa que um percorrer frio lhe arruina o erotismo.

É a filha do tenente francês, porque aposto que a vida dela é esta. Se eu me cruzo com ela todos os dias, não havia eu de saber?

2 comentários:

Maf disse...

falsa modéstia a sua, JdB? O que me move a ler os seus textos (e quase que, aposto, posso falar pelos outros leitores) nada tem a ver com psiquiatria, mas sim com a qualidade dos mesmos, o seu conteúdo, a graça na escrita, a profundidade e seriedade dos temas, salpicada aqui e acolá por uma pinga de erotismo, a excelência dos principios e valores que sempre pautam os seus textos. Falsa modéstia, JdB??
Bj e boa semana.

arit netoj disse...

Lembro-me deste texto como se fosse hoje... O tempo passa a correr tal como a ´filha do tenente francês'.
Beijinhos deliciados

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