13 julho 2012

Moleskine


Dia do Anjo. Várias pessoas, na caixa de comentários do blogue, por mail, sms ou telefone, evidenciaram a sua presença na passada 6ªfeira, fosse porque se lembravam da data, fosse porque leram o texto. Fiquei sensibilizado e agradeço a todos. Talvez pudesse ter escrito sobre o que é atingir-se a maioridade no Céu, como referiu a Arit Netoj, mas aquilo foi o que me saiu. Há muito que repito uma frase com que me cruzei: todos os dramas são suportáveis se fizermos deles uma história.  Este tom sério, cheio de uma fé quase obsessiva na eternidade, na bondade permanente de Deus, no colo imenso de Nossa Senhora tem sido, de facto a minha narrativa – e é com ela que me tenho sentido confortado. Talvez mude ligeiramente o tom um dia destes, mas os alicerces do meu bem-estar são para manter.

O tempo. Sempre que me esqueço um pouco desta sabedoria milenar, o destino acaba por me recordar o fundamental: há um tempo para tudo na vida.  Durante alguns anos fez parte do meu espólio uma pasta verde em plástico onde guardei exames, correspondência com médicos, digitalizações disto e daquilo, marcações de tratamentos, etc. Fruto de uma mente que tem os seus mistérios, teimei em conservar esta inutilíssima pasta que me recordava um 2001 de triste memória. No passado 6 de Julho, sozinho em casa a fazer arrumações (que vinha preguiçosamente a adiar) deitei tudo fora, com a mesma tranquilidade com que jogaria para o caixote o folheto promocional do lidl. Não olhei para trás, não tive presságios de arrependimento, não hesitei. Naquele próprio dia? Coincidência ou uma espécie de maioridade? A coincidência é a forma que Deus tem de permanecer anónimo, diria Einstein. 

Filme. Num destes dias um cachorro, fruto de um qualquer desconforto, ganiu e ladrou a noite toda. Custou-me a adormecer, acordei antes de tempo, dormi desconfortado. Ainda de madrugada, e a fazer minutos para o meu paredão matinal, decido socorrer-me do zapping. Num dos canais, Colin Firth (o galã premiado pelo seu desempenho em O Discurso do Rei) entra num restaurante na província francesa. É Natal e atrás dele vem um grupo de portugueses emigrantes. Um cavalheiro pergunta ao empregado por uma rapariga. A resposta veio pronta:
Quero lá saber (o original em inglês é how should I know?)!
Colin olha para cima, para o mezanino, e encontra a cara bonita e doce de Lúcia Moniz, a rapariga que sorri, apesar de estar a servir à mesa na véspera de Natal. No seu melhor português o cavalheiro diz-lhe:
Bonita Aurélia... e pede-a em casamento. Ela – a bonita Aurélia – gagueja timidamente que tudo aquilo pode ser uma boa ideia... Depois beijam-se, num amor abençoado pelas badaladas da meia noite. A irmã de Lúcia (a quem, independentemente do nome, ele não chamaria bonita...) aflora-lhe os lábios num misto de inveja e lascívia pouco cristãs e, porque é Natal e ninguém leva a mal, também o futuro sogro o beija na boca, perante o espanto – mas não indignação, do inglês. Entre o bonita aurélia e os beijos em profusão se constrói a imagem dos portugueses...

Livros. 30 anos depois, talvez, de ter tentado ler, na língua original, o Ulisses de James Joyce – e ter desistido na página 2 – leio o Retrato do Artista quando Jovem (Relógio D’Água, tradução de Paulo Faria). Estou a gostar muito, sendo que tem de ser lido em pedaços parcimoniosos, porque a escrita é densa. Terminado em 1914, a novela descreve a infância em Dublin de Stephen Dedalus e a sua busca de identidade (da contracapa). Muito se passa num colégio interno de  jesuítas, e percebe-se que durante séculos o Céu dos católicos foi ganho, não à custa da procura do Bem, mas porque as pessoas tinham o pavor do Inferno e do castigo de Deus. Atente-se numa pequeníssima parte da pregação do orientador de um retiro para jovens de dezasseis anos: Sim, um Deus justo! Os homens, raciocinando sempre como homens, ficam estupefactos por Deus aplicar um castigo eterno e infinito no fogo do inferno como pena por um único pecado grave. Raciocinam assim porque, cegados pela grosseira ilusão da carne e das trevas do entendimento humano, são incapazes de apreender a infâmia hedionda do pecado mortal. Raciocinam assim porque são incapazes de perceber que mesmo o pecado venial tem uma natureza tão sórdida e tão hedionda que, ainda que o Criador omnipotente pudesse pôr fim a toda a maldade e infelicidade no mundo, as guerras, as doenças, os roubos, os crimes, as mortes, os assassínio, na condição de permitir que um só pecado venial ficasse impune, um único pecado venial, uma mentira, um olhar irado, um momento de preguiça deliberada, Ele, o grande Deus omnipotente, não o poderia fazer, porque o pecado, seja por pensamentos, seja por actos, é uma transgressão da lei d’Ele, e Deus não seria Deus se não punisse o infractor.

JdB 

3 comentários:

Anónimo disse...

Belos quotes. E rubricas também. As usual. O filme que viu de madrugada chama-se Love Actually. Muito fraquinho mas com algumas partes cómicas. Bom f-d-s. pcp

ALA disse...

sempre doce!
Não sei se percebi bem a última chamada.

LA disse...

Guardar e' importante e anos depois deitar fora tambem, sao ambas provas de amor: a que quer manter vivo uma presenca e a que sabe que jamais a esquecera'.

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