02 julho 2018

Dos objectos e do fim de alguma coisa

Este estabelecimento, de que sou dono e editor, é sério (ou tenta sê-lo, malgré tout...) e, não obstante, vai falar-se aqui de sexo, sendo que a palavra sexo significa, no contexto deste escrito, fazer amor ou, na expressão de algumas pessoas mais criativas, fazer o amor.  

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Não falando seguramente de artefactos que se vendem nas casas das especialidade, menos ainda de bizarrias ou fetiches, há um ponto de intersecção claro entre uma caneta de tinta permanente e o acto sexual. Diria ainda que o raciocínio é replicável para um papel de carta, para uma dança, para um telemóvel, para um computador ou para um livro. Todos estes objectos, aparentemente diferentes entre si, têm algo em comum: não é a sua existência, o facto de serem uma criação humana e / ou tecnológica, ou de cobrirem épocas diferentes. Todos estes objectos têm uma associação não desprezível ao sexo - e não é porque nuns se podem ver filmes pornográficos, noutros se podem escrever contos picantes, noutros se pode fazer isto ou aquilo...

A caligrafia é a arte de escrever bem à mão, é a perfeição da letra. A aprendizagem com uma caneta de tinta permanente favorecia esse caminho e elevava-o. O surgimento das esferográficas e, posteriormente, o progresso tecnológico passadas meia dúzia de décadas, transformaram a escrita em algo utilitário: tudo se faz com brevidade e economia de texto, pois o importante é o entendimento da mensagem, a racionalização do tempo, a rapidez, a comunicação prática. O papel de carta vende-se nos alfarrabistas ou em lojas inundadas de pó, obsolescência e falência anunciada. Enquanto a escrita de uma carta requeria lentidão e cuidado, a de um sms requer mestria. Enquanto a escolha do papel e da tinta assentava numa escolha estética da gramagem e da cor, a utilização do telefone ou do computador obedecem a requisitos técnicos, de velocidade, de capacidade de memória e espaço para aplicações e jogos. 

Acontece o mesmo com a substituição do livro pelo tablet - a dimensão sensorial do toque, da observação da capa, do manuseio, foi substituída pela vertente prática, da não ocupação do espaço, da facilidade de leitura. Quer o telefone quer o tablet mataram, de alguma forma, o sentido do tacto. Agarramos mais, mas tocamos menos.

O desaparecimento do livro, do papel de carta ou da dança entre um homem e uma mulher, e a sua substituição pelo equivalente digital / tecnológico ou pela agitação em grupo, mataram um certo estilo de vida e, nessa voragem (quase) destruidora feriram de morte o erotismo do sexo. Numa sociedade na qual não há espaço para o vagar e para o contacto físico, que é composta por pessoas que falam entre si por mensagens curtas e práticas, que se veem através da virtualidade de ecrãs, que fazem da vida uma sucessão de actividades práticas, o erotismo não tem lugar. Sexo (no sentido de fazer amor) deixou de ser romântico, vagamente pecaminoso, exaltante e escondido, gratificante e íntimo, com a lentidão que cada um quer imprimir-lhe. Um dia será uma aplicação. 

A rapidez da vida, o progresso tecnológico, o fim do sentido do toque como fonte de emoção e de comércio entre as pessoas, a inutilidade da arte da escrita enquanto escolha criteriosa de forma e meios, a voragem invasora das mensagens curtas, o fim de uma certa forma de dançar, as vidas por trás de um ecrã, tudo isto destruiu uma parte da vida que se fazia a dois.

Desde o momento em que deixou de ser apenas impulso primitivo, o sexo foi (também) amor. Talvez um dia seja apenas uma actividade, uma função, uma linha numa lista, um bullet assinalado com eficácia mas sem criatividade, tal e qual como escrever um sms ou um mail a cujo fraseado se tiram as consoantes mudas e a pontuação, se usam abreviaturas sem critério, se dispensa o bom dia e o obrigado, gentilezas substituídas por um imoji.

O erotismo, temo eu, será o apropinquar do léxico português. A palavra é gira, mas ninguém sabe bem o que quer dizer.

JdB 

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