02 novembro 2009

O músico

Habituei-me a vê-lo, nos últimos dois ou três anos, numa das ruas mais movimentadas da zona onde vivo. Relativamente novo, pelos quarenta anos, aparentou sempre um ar distinto, para o qual contribui o ar lavado e as roupas em bom estado, não obstante algum desenquadramento com a moda.

Entabulei conversa com ele um dia, quando o vagar do meu fim de tarde o permitiu. O cão ao seu lado sorriu-me num abanar de cauda afável e o Alberto - assim se chama o rapaz - agarrou na bengala para que não houvesse o risco de ela ficar fora do seu alcance. Rodou a cabeça para captar melhor o som da minha voz e, perdoe-se a contradição, olhou-me por detrás de uns óculos escuros de cego. Trocámos meia dúzia de palavras de circunstância e afastei-me rapidamente, porque o Alberto tinha de trabalhar para poder facturar, passe a expressão demasiado economicista para quem está incapaz de ver o mundo, limitado a uma imaginação cuja fertilidade tem dias.

Durante cerca de uma hora ouve-se fado tocado com o maior sentimento. De guitarra na mão, o Alberto percorre as melodias que revelam a alma portuguesa funestamente melancólica. A qualidade é francamente elevada, pelo que as pessoas param, encostam-se a uma parede, ouvem com deleite. No fim, aproximam-se do músico, elogiam-lhe a arte, afagam o cão, deixam uma recompensa generosa na caixa da guitarra.

Quando o sol se põe e o movimento diminui, o Alberto recolhe, acompanhado do cão e de uma bengala, auxiliares que lhe tacteiam os obstáculos e o guiam na selva urbana. Ao chegar a casa, um apartamento herdado num bairro de classe média, cumpre religiosamente as suas rotinas: um bom prato de comida que o cão chamado Esperto merece recompensa; uma música suave para acalmar a tensão do dia e, por vezes, um banho quente e longo que revigora e relaxa.

Quando o noticiário das nove da noite está quase a terminar, chega a Marília, a quem o Alberto beija com uma sensualidade e um ardor que ganhariam foros de erotismo no cinema. Percorre-lhe o corpo com uma mão ávida e carregada de desejo, como se o tacto assumisse foros de grandeza, alcandorado ao mais importante de todos os sentidos que a natureza nos oferece.

Correu-te bem o dia, Alberto?

Não me posso queixar…

Percorrem então, lentamente, os canais de uma televisão maçadora e repetida. Comentam as notícias, as pessoas, as roupas, os cabelos, as actrizes. Alberto fala dos espectadores que o ouvem tocar, dos visitantes assíduos, dos esporádicos, da dimensão das esmolas.

Ao fim da noite, o homem que domina a guitarra portuguesa, cujos dedos reproduzem melhor do que ninguém o Mouraria e o Menor, já não tem óculos escuros, e os seus olhos azuis apreciam a geografia física da namorada.

Estás melhor do que nunca, Marília.

Abraçam-se e riem muito os dois, numa voragem de emoções fortes. A Marília enamorada doentiamente por um homem vocacionado para o teatro e que sempre enganou toda a gente. O Alberto, com uma cegueira só de paixão, sem conseguir imaginar o que seria não ver o que as mãos sentem.

Conheço-o bem. No fundo, no fundo, somos todos do mesmo bairro.

JdB

9 comentários:

Luísa A. disse...

Ai o malandrim do Alberto! Sobre os sentidos, João, tive dificuldade em fazer a «inversão de marcha» a que, de repente, o seu texto nos obriga. Comecei por imaginar um homem totalmente fiado no seu tacto e adivinhei uma cena delirante, porque o tacto deve ter potencialidades inimagináveis em quem não vê. Depois, subitamente, descubro que o homem se fia, sobretudo, no que vê e, não sei porquê, acho que ficou a perder. ;-)

Mike disse...

O Alberto e a Marília... porque tenho a sensação que são, também, do meu bairro, João?
Belas crónicas, estas. Abraço.
p.s. - Ó Luísa, não seja tão severa com o Alberto. ;)

cris disse...

JdB,

Não critico o Alberto, nos dias de hoje tem tem olhos é rei.
Nós todos temos olhos e vemos, e mesmo assim somos cegos, pois continuamos a votar em corruptos, aldrabões, no fundo em mafiosos.
Passam mesmo por baixo dos nossos olhos, com pensões milionárias etc.
Ao menos o Alberto não é um subcídio/dependdente, veste-se de manhã e vai "trabalhar".
Se não paga impostos não faz mal os outros também não.
Este é o país que temos e que deixamos que continue....
A sua rua é maravilhosa, não consegue encontrar um bom D.Duarte Nuno, que nos governe e ponha este país nos eixos.

Anónimo disse...

Pois é, é por estas e por outras, que eu tendo a não dar esmolas na rua a ceguinhos e afins ... se calhar têm o colchão cheio de notas; se calhar vão para casa e saem à noite num belo BMW; neste caso, o seu personagem vai para casa, para uma vida muito normal e com todos os sentidos a funcionar na perfeição! Não gosto destes Albertos, desculpe. Mas gosto da forma como os descreve. pcp

arit netoj disse...

Parabéns mais uma vez! Bela crónica.
Gosto muito de ser brindada com estas suas surpresas.
Beijinhos

JdB disse...

Luísa: o Alberto, esse malandrim como lhe chamou, quer tudo e acha que é melhor ser rico e com saúde do que pobre e doente. Assim sendo, antes ter a visão e o tacto para desfrutar por completo da Marília. Um dia pensarei num mudo...
Mike: sabe-se lá se não os fui roubar ao seu bairro... Tenho a certeza de que também há lá gente a "desconversar" com a realidade e com a honestidade.
pcp: satisfazer toda a gente é difícil, sabe? No outro dia disseram-me que só escrevia sobre gente boazinha, que o mundo não é assim... Olhe, foi a primeira tentativa de "sordidez". E mesmo assim quis acabar com outro desenlace, bem mais moral. Mas o texto ia longo, e eu queria algum lado negro...
Arit: Obrigado pela visita e pelos elogios. Ainda se lembra porque comecei a escrever?
Cris: obrigado pelo grito monárquico com o qual me solidarizo. Quanto ao D. Duarte (Pio, porque o Nuno, seu Pai, já é finado) tenho a dizer-lhe que há divisão de opiniões quanto à sua qualidade para ser nosso Rei. Agora, o Alberto é rei também - mas da trafulhice...

ZdT disse...

Cego ou não, para um músico, guarda-se sempre um tostão.

cris disse...

JdB,

Obrigada pelo alerta do meu erro, tem razão distrai-me, ou então a boca fugiu-me para a verdade, tb. já ouvi dizer que D Duarte Pio não seria bom rei.

Desenterrem D.JoãoI, D.Diniz, ou então já sei...

O Senhor não é João de BRAGANÇA, reenvindique a coroa para si, porque o Senhor sim, tem bons principios, culto e é bem formado.

Os Braganças de novo ao poder....(alguns)

Anónimo disse...

Eu concordo. Por mim voto toda a minha confiança no JdB! bjs. pcp

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