25 fevereiro 2015

Das banalidades

Convento da Arrábida, Fevereiro de 2015


No prefácio ao seu S. Paulo, Teixeira de Pascoaes escreve: As cousas da Natureza tiveram, para mim, grande encanto. Vivia-as, como se vive a dor ou o amor. Agora só me interessam as almas: a daquele campónio, a daquele mendigo, ou Napoleão em Santa Helena, Hamlet, diante de uma caveira, parodiando filosoficamente a atitude religiosa de S. Jerónimo; Lucrécio, o primeiro poeta da morte, ou Paulo de Tarso, o maior poeta da vida e da loucura, faminto de Deus, emagrecido até ao esqueleto -, esse fantasma que se apoderou da Humanidade. 

Nunca senti grande encanto pelas cousas da Natureza. Não tenho essa dimensão de bucolismo, não sou poeta do romantismo, não descortino no desabrochar da flor renovações de vida ou de existência, falha-me a atracção pela Primavera como época redentora. Às almas, se bem que de maior interesse, nem sempre consigo chegar, que me falta a profundidade da análise ou o apelo a biografias romanceadas. À pergunta então o que te interessa?, só me ocorre uma resposta: imaginar a vida das pessoas.

Na mesma sala universitária que eu sentam-se, com uma frequência semanal, pouco menos de duas dezenas de alunos - o mais velho com mais de 70 anos, o mais novo com vinte e poucos. Em bom rigor, a grande mancha geracional pende para a franja dos sub-trinta. Olho para quase todos com igual atenção. Não me interessam o que poderia chamar-se as almas dos meus colegas - não sei o que pensam da religião, da política, da ética, de S. Paulo. Não me desperta a curiosidade pelo que lêem, se o fazem para ser melhores pessoas, se para se educarem ou apenas como entretenimento. Interesso-me por cada um deles na dimensão mais comezinha, essa dimensão que estabelece com a elevação das ideias um conjunto vazio.

Olhar para eles é imaginar-lhes as vidas corriqueiras: como dormem, de que riem, quais são as rotinas, o que lhes encanta nas pessoas por quem se apaixonam, porque discutem, como se sentam nos cinemas ou o que gostam de comer, e outros pormenores de irrelevante importância para o concerto das nações. A minha mente, no que a isto diz respeito, não é perscrutante - é apenas criativa. 

Um dia, por motivos que têm pouco interesse, escrevi uma espécie de romance. Muito mais do que desenvolver os personagens principais para lhes dar corpo, peso específico, consistência, divertiu-me imaginar histórias para os elementos secundários. Como muito se passava num barco, quando dei por mim já redigira folhas imensas e entretidas sobre o armador, sobre uma filha que era feia mas que se apaixonava de forma correspondida pelo informático, sobre o anúncio de uma gravidez desejada com o meu menino é d'oiro em música de fundo, sobre a mãe que morria num repente ao som do Angelus, sobre tardes luxuosas na ilha de Ischia onde os ricos espraiam as suas depressões.

As cousas da Natureza têm pouco encanto. As almas interessam-me, desde que consiga juntar-lhes uma dimensão de banalidade. 

JdB      


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