O comovido filme em
versão documentário «O SAL DA TERRA»(1) sobre a obra de Sebastião Salgado constitui, logo
no título, um hino à criação, começando pelo ser humano, que um amigo do
fotógrafo elevou à categoria de sal da terra,
neste planeta cheio de contradições. É conhecida a origem da expressão,
proferida por um outro Amigo, que a formulou como pedido aos seus condiscípulos
para ajudarem a devolver aos homens o gosto pela vida. A versão completa desse pedido
abrange a dupla dimensão de dar tempero ao dia-a-dia e ser luz do mundo. Embora não esteja ao alcance de todos trazer salero à existência, é indiscutível o
contributo maior dado à humanidade pelo artista brasileiro.
Na fazenda dos Salgados, onde aprendeu com o pai a
observar
minuciosamente o horizonte. No fundo, começou aí a
paixão por captar imagens |
Avançando em espiral, o
documentário retorna ciclicamente ao ponto de partida – a enorme propriedade
dos Salgados, onde Sebastião nasceu e viveu com os pais e 6 ou 7 irmãs, até
partir para o liceu e a universidade, na cidade. Depois de uma infância alegre
e descomprometida, passada na enorme fazenda familiar (600 ha) coberta pela
frondosa mata atlântica, apanhou-se desprevenido quando se viu entregue a si
próprio, no burgo. Nem sabia o que fazer com o dinheiro que o pai lhe dera. A
ponto de passar fome, nas primeiras semanas, desconhecendo as mais elementares regras
de sobrevivência urbana. Salvou-o uma estudante gira e pragmática, por quem se
apaixonou à primeira vista: Leila, a mulher da sua vida desde o minuto em que
entrou no seu horizonte visual.
Terminado o curso de
economia, esperava-o o exílio, em França, para fugir às perseguições políticas
da ditadura brasileira (de 1964 a 1985), a apertar o cerco às contestações
estudantis, activamente participadas por Sebastião e Leila. A necessidade da
mulher fazer uma reportagem fotográfica para uma das cadeiras da universidade
resultou no primeiro contacto de Sebastião com a fotografia. Enquanto ela se
enfastiou com o TPC, ele descobriu um
hobby apaixonante. A ponto de concordarem que valia a pena arriscar o sustento
do casal naquela paixão, profissionalizando-a. Investiram, então, as suas
poupanças em bom equipamento fotográfico, programaram ao pormenor os temas a explorar
e partiram para os locais mais recônditos, fiéis à sua veia reivindicativa e de
intervenção social. A teleobjectiva de Sebastião converteu-se em verdadeira arma de arremesso, denunciando as injustiças
que se perpetuavam na clandestinidade. Tencionava trazer à luz aquele universo
de trevas escravizantes para os deserdados
da terra, atrevendo-se a ser a luz do
mundo e a beliscar os poderosos.
Nas minas, nas povoações
paupérrimas e subnutridas, nos circuitos de guerra que cruzam as apetecíveis
rotas de matérias-primas valiosas, nos campos de refugiados, nos êxodos maciços
de multidões à mercê de guerrilheiros ou de catástrofes, nos desastres naturais
e nos crimes ecológicos de multinacionais predadoras ou de déspotas insensíveis,
a máquina fotográfica de Salgado revelou ao mundo a dor dos impotentes. Sempre
a apontar para o alvo menos atractivo e anónimo: os rostos sofridos e sem voz. E
são tantos!
Até ao fim do século XX,
dominam as reportagens de cariz social, com forte componente solidária e até
intimista, mas zero de voyeurismo. Tornando sublime tudo o que vê, o fotógrafo
nem precisa de nos confirmar o relacionamento próximo que estabeleceu com todos
os que fotografou, ouvindo muito, criando fortes empatias e deixando amigos por
todo o lado. A perspectiva artística permite-lhe registar facetas mais íntimas sem
invadir nem desfear a realidade. Antes elevando-a ao patamar de Arte, no
sentido mais puro e clássico, de transmitir através do Belo. Um belo capaz de salvar
o mundo, como acreditava Dostoievski. Só Salgado para nos mostrar o rosto de
uma criança no esquife, de olhos escancarados, sem chocar nem desrespeitar,
antes convidando-nos a partilhar a dor daquela família enlutada. E são tantas.
Oriental cega, que aceitou posar para Salgado,
tornando-se porta-voz
dos proscritos. O fotógrafo mostra a imagem com uma
ternura especial |
O filho tinha toda a
razão em considerá-lo um aventureiro
e até um super-homem, quando via o pai desaparecer em longas ausências para
desbravar destinos longínquos e pouco conhecidos. Não tinha ainda idade para
perceber o alcance do serviço que os pais prestavam à humanidade por não excluírem
ninguém. Nada óbvio, nem comum.
O silêncio maravilhoso do
seu repertório a preto-e-branco, ou melhor, das milhares de gradações entre o
prateado e o antracite, foi bem explicado por Salgado, quando lhe perguntaram
por que recusava fotografar as cores da realidade (questão que não se colocou a
W.Wenders). Como o horizonte visual é incomensuravelmente maior do que o registo
fotográfico, a cor pode facilmente perturbar o conjunto ao impor elementos mais
vistosos no microuniverso captável pela fotografia. Isso aconteceu-lhe quando
fotografou as colinas arborizadas da propriedade dos pais e uma flor campestre se
salientou com o seu colorido intenso, desequilibrando completamente o conjunto.
A olho nu nem sequer sobressaía. A partir de então, preferiu o preto-e-branco, que
somava a vantagem de permitir relevações mais baratas e fáceis de manusear em casa.
Nos idos anos 90, a
reportagem no Ruanda, onde se atreveu a calcorrear os caminhos pejados de
fugitivos que avançavam em sentido oposto, deixou Salgado destroçado. Nas suas
palavras, viu literalmente 150km de cadáveres brutalizados, que tingiam a paisagem
de sangue. Sangue de inocentes.
De regresso a casa,
esperava-o a responsabilidade de gerir a fazenda dos Salgados, após a morte do
pai. Leila percebeu, como ninguém, a que ponto o marido ficara bloqueado pela
overdose de atrocidades que vira. Teve, então, a ideia genial de suspenderem as
reportagens e lançaram-se na reflorestação da herdade que, entretanto, se
desertificara. O contacto com a natureza operou milagres na família e no solo,
que antes parecia estéril. Diferentemente das imagens de denúncia a horrores já
cometidos, neste projecto agrícola Salgado experimentou a alegria de conter e
reverter uma paisagem devastada. Fez bem a todos assistir ao renascimento
fulgurante da natureza. No espaço de uma década, o horizonte voltou a ser verde.
Milhões de espécies da mata atlântica voltaram a cobrir o solo árido de outros
tempos e até os jaguares regressaram. Generosamente, o casal decidiu fundar ali
o Instituto Terra e oferecer Estado brasileiro para que todos pudessem gozar
daquele espaço luxuriante.
Quem diria que depois de
se achar ferido de morte para a sua profissão, o melhor ainda estava para vir. Novamente,
a clarividência de Lélia franqueou-lhe uma alternativa, mudando o foco para a
grandiosidade da natureza: “Genesis” seria a nova aposta, enveredando pelo
mundo natural. Vários amigos desaconselharam-no, pois não seria aos 50 que se
poderia reinventar, ainda por cima num segmento de concorrência feroz entre
veteranos da fotografia paisagística. Mas já recuperado pela paragem sabática
no território da sua infância, Salgado seguiu o feeling de Leila e lançou-se na
descoberta dos seres mais antigos do planeta. Recuando aos primórdios da
criação, plantas, animais e tribos milenares desfilam pela sua teleobjectiva,
com a elegância e beleza únicas das suas fotografias! Um sucesso rotundo, que
presta homenagem ao planeta azul.
Nos Galápagos, a pata de um lagarto lembrou
a Salgado a mão de um cavaleiro medieval |
A facilidade com que
apanha perspectivas demasiado próximas do que pensávamos serem animais
perigosos, percebemos não ser truque de zooms híper potentes, mas a proximidade
real de um aventureiro que nos conta como ficou enternecido pela confiança do
leão-marinho que se veio estender ao seu lado, à beira-mar, ou da baleia que
vinha acostar à sua embarcação para receber umas festas, divertindo-se depois a
saltar nas ondas a uma boa distância do barco do amigo para não correr o risco
de o abalroar! Uma delicadeza incrível. Lembra S.Francisco que conseguia ser
próximo de todas as criaturas, entre a irmã raposa e o irmão lobo ou o irmão
fogo... a voltar àquele primeiro tempo em que o leão convivia fraternalmente com
o cordeiro. Um dom raríssimo.
Expedição ao Polo Sul
|
Compaixão podia ser o
título do documentário. Entre os momentos festivos de uma natureza esplendorosa
e os efeitos nefastos de actos perversos, é evidente o respeito imenso que a
vida inspira a Salgado. Da mesma forma que não precisa de confirmar que as
fotografias com as agressões contra a humanidade foram regadas a lágrimas! O
rosto sulcado de linhas fundas e o olhar faiscante e límpido com que nos encara
do outro lado do ecrã têm as marcas inconfundíveis de quem chorou ao lado e em
nome de todos os que deixaram de poder chorar. Talvez por isso, uma boa
percentagem do seu álbum penetra-nos na alma, provocando uma comoção que não
irrompe só do assombro pela Beleza maior que contêm. Aquelas imagens das gentes
anónimas que povoam a Terra surgem envoltas numa aura sagrada, que suscita uma
reverência infinda. No final, apetece cantar com Louis Armstrong what a wonderful world.
Maria Zarco
(a preparar o próximo gin tónico,
para daqui a 2 semanas)
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(1)
FICHA TÉCNICA
Título original:
|
LE SEL DE LA TERRE (The
salt of the earth)
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Título
traduzido em Portugal:
|
O SAL DA TERRA
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Realização:
|
Wim Wenders e Juliano Ribeiro Salgado
|
Argumento:
|
Wim Wenders, Juliano Ribeiro Salgado e David Rosier
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Produzido
por:
|
David Rosier, Lélia Wanick Salgado e Andrea Gambetta
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Produção:
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Amazonas Images, Decia Films,
Fondazione Solares Delle Arti
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Directores de Fotografia:
|
Hugo Barbier e
Juliano Salgado
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Música original:
|
Laurent Petitgand
|
Duração:
|
110 min.
|
Ano:
|
2014
|
País:
|
Brasil e França
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Elenco:
|
Sebastião Salgado
Leila Salgado
Juliano Ribeiro
Wim Wenders
|
Local das filmagens:
|
o mundo
|
Premiado em Cannes
na mostra “Un Certain Regard”, 2014.
1 comentário:
Agradeço o texto apelativo que me motiva a ver o documentário e a exposição.
É tão grande o privilégio de habitarmos este magnífico planeta, que infelizmente se confunde tudo e o ser humano pensa-se seu dono e carrasco.
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