No
MNAA(1),
até 6 de Setembro, está em exposição boa
parte da obra da primeira grande pintora portuguesa, revolucionária a vários títulos
– Josefa de Óbidos (1630-1684). Chamava-se Josefa de Ayala (filha de espanhola)
e assinava como “Josefa em Óbidos”, referindo a cidade onde funcionava o
atelier. Viver longe da capital do império, quando a falta de meios de
transporte aumentava muito a distância, não atrapalhou nada o seu enorme fluxo
de encomendas e vendas.
Só
o facto de fazer carreira como pintora em pleno século XVII já é uma raridade. Soube
somar o talento artístico ao sucesso comercial, vivendo muito à frente do seu
tempo embora numa versão sóbria e hábil. Aprendera o ofício com o pai, exímio a
pintar paisagens mas um descalabro com os dinheiros. Acumulou dívidas e mais
dívidas, que Josefa foi liquidando com eficiência, como tudo na sua vida
profissional. A sua óptima gestão financeira permitiu-lhe adquirir inúmeros
terrenos e gerar uma fortuna considerável, que legou às sobrinhas que, entretanto, adoptara, dando indicações precisas para a herança seguir pela descendência feminina, como que a desafiar o costume do morgadio. Tudo atípico e quase provocador.
O
título da mostra acentua o contributo dado à história da arte nacional como
precursora do estilo dominante na Europa seiscentista, ao qual deu um cunho
muito original: «JOSEFA DE ÓBIDOS E A INVENÇÃO DO BARROCO PORTUGUÊS».
O zoom sobre o rosto primoroso
da menina de uma das suas telas decora as ruas de Lisboa, exibida em moopies
estrategicamente situados. Como se o Museu tivesse invadido a cidade,
enchendo-a de lisboetas simpáticas e de uma beleza soft. Tudo bastante
português.
Os seus rostos ovais, q.b. abonecados, com olhos enormes de expressão
meiga e bocas pequenas marcou o barroco português, distinguindo-o do espanhol,
segundo os comissários das Exposição. Os tons leves da sua paleta também se
diferenciaram das tonalidades carregadas e exuberantes dos artistas espanhóis.
A tranquilidade que imana dos seus óleos nada tem a ver com os contrastes
fortes que são apanágio do barroco de outras latitudes. Até o jogo de claros-escuros
assume na portuguesa um efeito cénico, alegre e ligeiro, de penumbras
decorativas que nunca assustam nem intimidam. Antes sublinham as figuras
iluminadas. À maneira do barroco, trabalha o detalhe ao limite, apesar de
conseguir uma leveza imprevista. No fundo, replica a proeza da filigrana. De certo
modo, a sua obra saboreia-se na aproximação, exigindo tempo e uma observação
minuciosa.
O rigor e a beleza dos pormenores |
Outra especificidade do seu
barroco é a densidade interior das figuras, enxutas e sem puxar à emoção, mesmo quando vivem momentos dramáticos. Um pudor
que se aproxima mais do Oriente que do salero
da Europa do Sul. Talvez já se fizessem sentir as influência dos territórios do
império, na Ásia. Como comentou um dos comissários desta exposição, Joaquim
Caetano, sobre o rosto de Maria Madalena aos pés da cruz, no retábulo da
Misericórdia de Peniche: «Está triste,
mas é difícil que a gente chore com ela.». Perpassa ali uma afectividade
que deriva de uma devoção mais recatada e doce, alheia aos arrebatamentos do
barroco espanhol e italiano. Há quem lhe chame a pintora da doçura. Mas frisa um
dos comissários que se prende com um atributo divino. Por isso se torna marcante
na sua pintura sacra, que foge ao realismo ostensivo e perturbador das telas
espanholas contemporâneas.
Pouco comum na sua abordagem suave e
estilizada é o «Cristo flagelado» (1670), de uma violência explícita. Mesmo a
posição, a mostrar as costas ensanguentadas, é invulgar. A frase latina no topo
clarifica o propósito: «Sobre as
minhas costas lavram os pecadores», enquadrando o crucificado com panejamentos ornamentais.
Vale
a pena referir, em traços largos, a sua vida, de uma ousadia singular, embora
sem sobressaltos nem espalhafato. Antes subtil, como o traço suave do seu
pincel. Filha de pintor português e mãe andaluza, nasceu em Sevilha mas
mudou-se para Portugal na tenra infância, instalando-se em Óbidos. Com enorme faro para o negócio, montou e geriu um
atelier que se tornou famoso, emancipando-se do pai, desastroso nas finanças.
Uma opção arriscada e nada fácil para um artista, menos ainda sendo mulher.
Soube fidelizar clientes como poucos, tornando-se a pintora de palácios e
conventos, designadamente de várias ordens religiosas femininas.
De Espanha herdou o gosto pelas
naturezas-mortas, nada cultivado em Portugal, fornecendo palácios e casas
burguesas. Note-se que só começa a assiná-las depois de o pai morrer, em 1674.
Natureza Morta com Doces e Barros, na Biblioteca Municipal Braamcamp Freire, Santarém |
Naturalmente que na época, a
arte sacra predominava sobre as temáticas laicas. Além disso, até recentemente,
tendia-se a menorizar as naturezas-mortas, até pela ausência das figuras
humanas. Tudo junto, resultou num caldo
muito desfavorável ao seu legado artístico.
Sabendo
da torrente de equívocos que pairam sobre Josefa de Óbidos, a exposição
propõe-se alterar a impressão de que se ficou por naturezas-mortas a lembrar o chá das cinco ou por uma arte sacra
igualmente adocicada. A maioria desconhece a obra prolífica e eclética que deixou,
realçando as figuras e demais elementos do primeiro plano sobre fundos hiper simplificados.
Era o pai que trabalhava os cenários envolventes, enquanto houve parceria. Nas
palavras de um dos comissários (Joaquim Caetano): «Pretendemos mostrar que, ao contrário do que se pensa, ela não é (apenas) uma pintora de naturezas-mortas. Não é uma
rapariga que está fechada em casa a pintar bolinhos.»
O testemunho de Miguel Torga exemplifica a desilusão de muitos intelectuais
que viram a exposição do MNAA, em 1949, taxando a artista de provinciana monótona
e pouco dotada, desmerecendo que era invulgarmente culta e emancipada. Claro
que também conta a maior ou menor empatia com a sua estética. Bem desagradado, arrasou-a
no seu Diário: «A senhora faz renda com os pincéis. Que falta de
imaginação, que miséria de desenho, que geleia aquilo tudo! Enquanto um baboso
se extasiava diante de um Menino Jesus rechonchudo, que parecia uma
trouxa-de-ovos, raspei-me. Raça de portugueses que não dão um pintor que se
aproveite!»
A exposição privilegia a lógica
temática, começando por uma síntese onde se acompanha a fase de aprendizagem e
se exibem também as telas do pai e mestre – Baltazar Gomes Figueira, permitindo
a comparação. Segue-se o grupo de naturezas-mortas, que era uma temática comum
em Espanha, mas rara em Portugal. A última sala reproduz o ambiente de uma
igreja barroca com 3 retábulos da sua autoria: o da Misericórdia de Peniche,
sendo a primeira vez que os vários painéis voltam a estar reunidos, desde que foram separados no
século XVIII; o da vida de Santa Teresa de Ávila
proveniente da Igreja Matriz de Cascais; e duas santas de um retábulo que
existiria na sacristia da Igreja Matriz da Lourinhã.
O texto de apresentação no Museu realça o
valor da pintura de Josefa de Óbidos:
Mais de 130 obras (pintura, escultura e artes
decorativas) vindas de várias instituições nacionais e internacionais, como os
museus do Prado e de Bellas Artes de Sevilha, o Mosteiro do Escorial e de
inúmeras coleções privadas, portuguesas e estrangeiras, compõem uma mostra
inovadora, que o Museu Nacional de Arte Antiga, em parceria com a Ritmos,
preparou para o verão de 2015.
Josefa de Ayala nasceu em Sevilha em 1630. Filha do
pintor Baltazar Gomes Figueira (Óbidos, 1604-1674) e de uma andaluza, Catarina de
Ayala, veio para Portugal em 1634, quando o pai regressou com a família à sua
terra natal, Óbidos. Na pequena vila, Baltazar continuou a sua carreira de
artista, introduzindo entre nós a pintura de naturezas-mortas, à maneira do
bodegón sevilhano, que a filha também veio a cultivar.
A fama e estima que rodearam a obra de Josefa atravessaram o tempo, sendo ainda hoje vasto o volume de trabalhos preservados. Caso ímpar de mulher artista, confinada ao espaço limitado de Óbidos, onde permaneceu quase toda a vida, converteu-se, não obstante, no mais eficaz e reputado expoente do Barroco português, no ciclo que se seguiu à Restauração.
Mais do que as naturezas-mortas que a celebrizaram, distingue-a, de facto, a criação de um imaginário piedoso, com que soube responder às aspirações de um Barroco que Portugal modelou no seu próprio modo, inserindo, no seu decorativismo exacerbado e festivo, uma forte componente teatral.
Corrigir a ideia de uma pintora curiosa mas
provinciana, e apresentar Josefa de Óbidos como uma artista culta e como um
evidente reflexo da espiritualidade da época, é um dos objetivos desta
exposição.
Apreciar a originalidade do legado de uma
mulher única no panorama cultural português do século XVII vale bem a visita ao
MNAA que, além disso, tem um jardim fantástico, de onde se avista o Tejo. Muito
desintoxicante.
Maria Zarco
(a preparar o próximo gin tónico,
para daqui a 2 semanas)
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