Ontem foi dia de apresentação na Faculdade do meu projecto de tese de mestrado. Dei-lhe o título (à apresentação) de uns versos de fado: e na minha confissão / vão as rimas do meu fado. O trabalho é excessivamente extenso - e talvez fastidioso - para o apresentar por completo aqui. Mas não resisto a transcrever uma parte mais histórica, que suscitou alguns sorrisos, nomeadamente nos meus colegas mais jovens: a visão de alguns escritores do que era o fado / fadistas no final do séc. XIX:
***
Ramalho Ortigão:
O fadista não trabalha nem possui capitais que representem uma
acumulação de trabalho anterior. Vive dos expedientes da exploração do seu
próximo. Faz-se sustentar de ordinário por uma mulher pública, que ele espanca
sistematicamente. Não tem domicílio certo. Habita sucessivamente na taberna, na
batota, no chinquilho, no bordel ou na esquadra da polícia. É um anémico, um
cobarde e um estúpido. Tem tosse e tem febre; o seu peito é côncavo, os braços
são frágeis, as pernas cambadas; as mãos finas e pálidas como as das mulheres,
suadas, com as unhas crescidas, de vadio; os dedos queimados e enegrecidos pelo
cigarro, a cabeleira fétida, enfarinhada de poeira e de caspa, reluzente de
banha.
E remata o escritor,
descrevendo-o a cantar o fado...
(...) em que se descrevem crimes, toiradas, amores obscenos e devoções
religiosas à Virgem Maria, com uma voz soluçada, quebrada na laringe,
acompanhada da expressão fisionómica de uma sentimentalidade de enxovia,
pelintra e miserável.
Pinto de Carvalho (Tonop) na sua
História do Fado:
O fadista – minado de taras, avariado pelas bebidas fortes e pelas
moléstias secretas, com o estômago dispéptico, o sangue descraseado e os ossos
esponjados pelo mercúrio - é um produto
heteromorfo de todos os vícios, atinge a perfeição ideal do ignóbil.
Ordinariamente o fadista sabe cantar – com uma entoação febril e húmida
de soluções, olhos quebrados e a inamovível ponta de cigarro soldada ao lábio
inferior – os fadinhos docemente articulados sobre um ritmo em que brincam
fantasias de espasmos, as pornografias igualitárias das tascas onde o álcool
flameja e a embriaguez estrebucha, os versos de uma moral tão moderada quanto
oportunista, as obscenidades levadas até à incongruência fétida, as indecências
envoltas em palavras doces como suspiros abafados – todas as chulices do
reportório escatológico.
Rocha Peixoto, um arqueólogo e
etnólogo do norte, escreveria em 1893, citado na 4ª palestra de Luiz Moita, a
respeito do mote de um fado:
Conhecido mote dum fado típico, com todo o temperamento dum povo lá
dentro, imundo, vadio, hipócrita, malandro. Miséria social, miséria orgânica,
melopeia sem encanto, sem elevação, sem frescura, sem ingenuidade, modismo de
desespero, de conformação, de penitência e de perdão – atitude e marcha,
emprego de vida e ideal, tudo dá, ao contemplar destes grupos, uma noção: é a
pátria que passa.
Fialho de Almeida afirmará:
O fado não é o tal
queixume aiado e lírico da baceira lusitânica geral, mas um canto de criminais,
uma chorosa elegia de taberna, cárcere e alcouce.
António Arroio incitará:
Rapazes: não cantem o
fado!
***
A minha tese versará mais ou menos isto (porque ainda não está fechada):
O objectivo do trabalho é encontrar o confessionalismo
no fado na época de ouro dos letristas [1920 – 1960], naquele fado que vingou
em quem veio antes de Amália. Um certo
fado que se mantém num gueto, seja porque fora dele o ar parece ser rarefeito,
seja porque o gueto é uma espécie de templo onde se guardam espécies raras em
vias de extinção.
JdB
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