É bem verdade que a brincar se dizem verdades
daquelas lapidares, que tendem a ser ignoradas ou desvalorizadas, o que vem a
desaguar no mesmo.
Um bom exemplar vem num cartoon, bastante viajado pela net, que denuncia as diferenças
abissais entre países, i.e., entre pessoas, com disparidades de desenvolvimento
e de condições de vida, que correspondem a um fosso (intransponível?) de mais
de 100 anos de distância. O cartoon
propõe-se registar o impasse numa sondagem, aparentemente inócua, levada a cabo
nas Nações Unidas, onde supostamente todos comunicam bem em língua inglesa.
Aliás, o problema é anterior à língua, descendo àquele patamar obscuro onde as
palavras já não remetem para nenhuma realidade (re)conhecida. Todos iguais, mas todos, afinal,
excessivamente diferentes, como
alertava Orwell. Acrescentaria: todos demasiado afastados, perigosamente desencontrados.
Até seria fácil, se fosse um mero entrave linguístico.
Dá que pensar como perguntas simples e elementares
podem chocar com barreiras mentais que afectam dramaticamente a percepção da
realidade. Segue a radiografia do cartoonista às zonas cegas de cada região do
mundo, numa abordagem intencionalmente simplificada, mas directa ao busílis
sobre o que falta a uns e a outros, criando uma autêntica Torre de Babel. Mais
actual do que se possa julgar:
Quando a falar só nos desentendemos, virando de pantanas a bem-intencionada divisa |
Chegados às dessintonias instaladas entre pessoas,
vem a propósito falar de uma via de comunicação apostada em suplantar todas as
discrepâncias, proporcionando uma linguagem universal – a Arte. De facto, é a
linguagem de todos os tempos e lugares, sobretudo quando remete para a sua raiz
fundacional – a Beleza – fazendo-a emergir inclusive das e nas realidades mais
abomináveis. Nessa concepção clássica, o artista é desafiado como que a
replicar aquela divisa atribuída pela sabedoria popular ao Criador: de escrever direito a partir das linhas
tortas e disfuncionais que a realidade visível pode assumir.
A partir do fim do século XVIII, um surto de novas
experiências artísticas começou a atribuir função diversa à Arte, nomeadamente
preferindo-a para mensagem de alerta, se necessário permeável a (por vezes,
empapada mesmo de) toda a fealdade que o artista quisesse plasmar nela.
Exacerbou-se também a subjectividade e enfraqueceu-se o nexo multi-milenar
entre o Belo e a expressão artística.
A erupção de novas perspectivas artísticas teve,
pelo menos, o mérito de tornar mais consciente e fundamentada a opção pelo
trilho clássico, tornando-o numa escolha mais livre e algo corajosa,
frequentemente em contracorrente. Dostoievski concentrou-se nesse desafio
sempiterno da Arte com notável eloquência, partindo do pressuposto de que: «a Beleza salvará o mundo». Mesmo que
não o tivesse verbalizado, o Belo está omnipresente na sua obra. Recuando aos
tempos do Império Romano (finais), Santo Agostinho chegou a ter a audácia de
interpelar a própria Beleza, fonte e destino da Arte, pois não a tomava por
conceito abstracto mas realidade personificada. Lavrou, assim, um dos clamores
poéticos mais tocantes da alma humana:
“Tarde te amei, ó Beleza tão antiga e
tão nova, tarde te amei! Estavas dentro de mim e eu estava fora, e aí te
procurava... Estavas comigo e eu não estava contigo... Mas Tu me chamaste,
clamaste e rompeste a minha surdez. Brilhaste, resplandeceste e curaste a minha
cegueira.”
Saltando para o século XX, um outro esteta, à sua
maneira, sem quaisquer pergaminhos que se conheçam no mundo artístico, a um mês
de morrer, proferiu um discurso algo profético, confiando à poesia o papel de salvaguarda da liberdade da
nação. Mais: de purificadora e balizadora do poder político. Naquele discurso,
poesia, vida e poder surgem interligados e a Arte é apontada, por aquele
governante, como a guardiã da verdade. Insólito? Trata-se da intervenção do
Presidente John F. Kennedy (1917-22.Nov.1963), proferida a18 de Outubro de
1963, no Amherst College, aqui abreviadamente citada:
«(…) Poetry (is) the means of saving power from itself. When power leads
man towards arrogance, poetry reminds him of his limitations. When power
narrows the areas of man’s concern, poetry reminds him of the richness and diversity
of his existence. When power corrupts, poetry cleanses. For art establishes the
basic human truth which must serve as the touchstone of our judgment.
The artist, however faithful to
his personal vision of reality, becomes the last champion of the individual
mind and sensibility against an intrusive society and an officious state. The
great artist is thus a solitary figure. (…)
If sometimes our great artists
have been the most critical of our society, it is because their sensitivity and
their concern for justice, which must motivate any true artist, makes him aware
that our Nation fails short of its highest potential. I see little of more
importance to the future of our country and our civilization than full
recognition of the place of the artist. (…)
Artists are not engineers of the
soul. It may be different elsewhere. But democratic society–in it, the highest
duty of the writer, the composer, the artist is to remain true to himself and
to let the chips fall where they may. In serving his vision of the truth, the
artist best serves his nation.
If art is to nourish the roots of
our culture, society must set the artist free to follow his vision wherever it
takes him. We must never forget that art is not a form of propaganda; it is a
form of truth. (…)
I look forward to an America
which will not be afraid of grace and beauty, which will protect the beauty of
our natural environment, which will preserve the great old American houses and
squares and parks of our national past, and which will build handsome and
balanced cities for our future.
I look forward to an America
which will reward achievement in the arts as we reward achievement in business
or statecraft. I look forward to an America which will steadily raise the
standards of artistic accomplishment and which will steadily enlarge cultural
opportunities for all of our citizens.
(…) And I look forward to a world which will be safe not only for
democracy and diversity but also for personal distinction.
Este ano, outro
poeta-escritor, que tem procurado devolver à vida o Belo, foi galardoado com o
Grande Prémio de Literatura da Associação Portuguesa de Escritores – o P.Tolentino
Mendonça. Encarando de frente os horrores vividos por muitos e as situações
pardacentas em que outros tantos se sentem atolados, o poeta esclarece ao que
vem, quando escreve: «O dever humilde
de um escritor é também testemunhar a
beleza possível, hipotética, latente e arrepiante que é nossa companheira de
todos os dias, mesmo quando nos parece que, historicamente, estamos afundados
na lama, no conflito e nos bloqueios históricos. (…) É muito necessário
fazer o gesto de levantar os olhos daquilo que nos parece o confuso da
materialidade dos próprios acontecimentos, dos
factos brutos da nossa pequena história e procurar outros pontos de vista, uma
grandeza que, muitas vezes, se oculta no fragmento, no insignificante,
naquilo que aparentemente não tem qualquer valor».
É reconfortante constatar
que vão sempre reaparecendo artistas empenhados em desencantar beleza, até
mesmo dos factos brutos da nossa pequena
história. Para o provar, nada melhor do que a voz quente e brilhante de Prince
(inesquecível), dedicada – claro – à Most
beautiful girl in the world(1), onde aposto que cabe toda a população
feminina do planeta:
Maria Zarco
(a preparar o próximo gin tónico,
para daqui a 2 semanas)
__________________________
(1) A letra de “The Most Beautiful Girl In The World”:
[Verse 1]
Could you be the most beautiful girl in the world?
It's plain to see you're the reason that God made a girl
When the day turns into the last day of all time
I can say I hope you are in these arms of mine
And when the night falls before that day I will cry
I will cry tears of joy cuz after you all one can do is die, oh
[Chorus]
Could you be the most beautiful girl in the world?
Could you be?
It's plain to see you're the reason that God made a girl
Oh, yes you are
[Verse 2]
How can I get through days when I can't get through hours?
I can try but when I do I see you and I'm devoured, oh yes
Who'd allow, who'd allow a face to be soft as a flower? Oh
I could bow (bow down) and feel proud in the light of this power
Oh yes, oh
[Chorus]
[Verse 3]
And if the stars ever fell one by one from the sky
I know Mars could not be, uh, too far behind
Cuz baby, this kind of beauty has got no reason to ever be shy
Cuz honey, this kind of beauty is the kind that comes from inside
[Chorus]
Could you be (could you be) the most beautiful girl in the world?
So beautiful, beautiful
It's plain to see (plain to see) you're the reason that God made a girl
[Outro]
Oh yeah! (Oh, yes you are)
Girl (Could you be?)
You must be ... oh yeah!
(Could U be?)
You're the reason... oh yeah
(Could) [x3]
Could you be the most beautiful girl in the world?
It's plain to see you're the reason that God made a girl
When the day turns into the last day of all time
I can say I hope you are in these arms of mine
And when the night falls before that day I will cry
I will cry tears of joy cuz after you all one can do is die, oh
[Chorus]
Could you be the most beautiful girl in the world?
Could you be?
It's plain to see you're the reason that God made a girl
Oh, yes you are
[Verse 2]
How can I get through days when I can't get through hours?
I can try but when I do I see you and I'm devoured, oh yes
Who'd allow, who'd allow a face to be soft as a flower? Oh
I could bow (bow down) and feel proud in the light of this power
Oh yes, oh
[Chorus]
[Verse 3]
And if the stars ever fell one by one from the sky
I know Mars could not be, uh, too far behind
Cuz baby, this kind of beauty has got no reason to ever be shy
Cuz honey, this kind of beauty is the kind that comes from inside
[Chorus]
Could you be (could you be) the most beautiful girl in the world?
So beautiful, beautiful
It's plain to see (plain to see) you're the reason that God made a girl
[Outro]
Oh yeah! (Oh, yes you are)
Girl (Could you be?)
You must be ... oh yeah!
(Could U be?)
You're the reason... oh yeah
(Could) [x3]
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