Destino: desisti, regresso, aqui me tens.
Em vão tentei quebrar o círculo mágico
das tuas coincidências, dos teus sinais, das ameaças,
do recolher felino das tuas unhas retracteis
- ah então, no silêncio tranquilo, eu me encolhia ansioso
esperando já sentir o próximo golpe inesperado.
Em vão tentei não conhecer-te, não notar
como tudo se ordenava, como as pessoas e as coisas chegavam
que eu, de soslaio, e disfarçando, observava [em bandos,
pura conter as palavras, as minhas e as dos outros,
para dominar a tempo um gesto de amizade inoportuna.
Eu sabia, sabia, e procurei esconder-te,
afogar-te em sistemas, em esperanças, em audácias;
descendo à fé só em mim próprio, até busquei
sentir-te imenso, exacto, magnânimo,
único mistério de um mundo cujo mistério eras tu.
Lei universal que a sem-razão constrói,
de um Deus ínvio caminho, capricho dos Deuses,
soberana essência do real anterior a tudo,
Providência, Acaso, falta de vontade minha,
superstição, metafísica barata, medo infantil, loucura,
complexos variados mais ou menos freudianos,
contradição ridícula não superada pelo menino burguês,
educação falhada, fraqueza de espírito, a solidão da vida,
existirás ou não, serás tudo isso ou não, só isto ou só aquilo,
mas desisti, regresso, aqui me tens.
A humilhação de confessar-te em público,
nesta época de numerosos sábios e filósofos,
não é maior que a de viver sem ti.
A decadência, a desgraça, a abdicação,
os risos de ironia dos vizinhos
nesta rua de má-nota em que todos moramos,
não são piores, ah não, do que no dia a dia sem ti.
É nesta mesma rua que eu ouço o amor chamar por mim,
é nela mesma que eu vejo emprestar nações a juros,
é nela que eu tenho empenhado os meus haveres e os dos outros,
nela que se exibem os rostos alegres, serenos, graciosos,
dos que preparam as catástrofes, dos que as gozam, dos que são
É nesta mesma rua que eu [as vítimas.
ouço todos os sonhos passar desfeitos.
Desisti, regresso, aqui me tens,
coberto de vergonha e de maus versos,
para continuar lutando, continuar morrendo,
continuar perdendo-me de tudo e todos,
mas à tua sombra nenhuma e tutelar.
Jorge de Sena, in 'Pedra Filosofal'
***
Inscrição
Ama silenciosamente o teu destino.
Nem pátria nem palavras memoráveis
farão durar a luz nos teus sentidos:
alguns objectos que te lembrem, poucos livros
e versos que sílaba a sílaba transfiguras
até entardecer cada palavra.
Teces o teu tremor. E sobre a pedra
a marca que ficar será de ausência.
Luis Filipe Castro Mendes, in "Os Amantes Obscuros"
***
Sofro, Lídia, do Medo do Destino
Sofro, Lídia, do medo do destino.
A leve pedra que um momento ergue
As lisas rodas do meu carro, aterra
Meu coração.
Tudo quanto me ameace de mudar-me
Para melhor que seja, odeio e fujo.
Deixem-me os deuses minha vida sempre
Sem renovar
Meus dias, mas que um passe e outro passe
Ficando eu sempre quase o mesmo, indo
Para a velhice como um dia entra
No anoitecer.
Ricardo Reis, in "Odes"
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