É evidente que pelo menos alguns bispos europeus, e talvez vários americanos, consideram que o uso do “foro interno” para “reconciliar” católicos recasados é uma prática aceite. Porquê a polémica então? Estaremos a lidar com um fait accompli? Um pouco de história pode ajudar.
A distinção entre os “foros externos” (por exemplo os tribunais eclesiásticos) e o “foro interno” (i.e. o confessionário enquanto tribunal da consciência) tem sido alvo de discussões há séculos no âmbito do Direito Canónico e da teologia. Mas ao longo dos últimos 47 anos surgiram várias vicissitudes de interpretação que conduziram aos actuais desentendimentos sobre o chamado “recasamento católico”.
Esta cronologia pode ajudar a mostrar como chegámos ao actual cenário:
1969: O padre Joseph Ratzinger publica um artigo num jornal teológico em que discute a possibilidade de que “na comunidade da Igreja Primitiva, como aparece representada em Mateus 5 e Mateus 19, havia a prática de divórcio e recasamento depois de um caso de adultério”.
1972: No artigo “Sobre a Questão da Indissolubilidade do Casamento”, Ratzinger contradiz a sua afirmação anterior uma vez que “à luz da completa unanimidade da tradição ao longo dos primeiros quatro séculos em sentido contrário, esta posição é inteiramente improvável”. Mas mantem que em certos casos existe a possibilidade “não judicial, com base no testemunho do pastor e de membros da Igreja, de admitir à Comunhão aqueles que vivem num segundo casamento”. Cita como justificação para isso a falibilidade dos processos de nulidade e as eventuais novas obrigações morais decorrentes de um segundo casamento.
1973: O Cardeal croata Franjo Šeper cita “a prática aprovada do foro interno” de permitir aos católicos num segundo casamento inválido que regressem aos sacramentos após o arrependimento.
1975: O Arcebispo Jean Jérôme Hamer, secretário da Congregação para a Doutrina da Fé (CDF) estipula que o foro interno pode permitir aos católicos divorciados recasados receber os sacramentos caso “tentem viver de acordo com as exigências dos princípios morais cristãos”.
1981: Essa estipulação, contudo, embora formalmente aprovada pelo CDF, foi restringida pela Exortação Apostólica de João Paulo II, “Familiaris Consortio”: “A Igreja, contudo, reafirma a sua práxis, fundada na Sagrada Escritura, de não admitir à comunhão eucarística os divorciados que contraíram nova união. Não podem ser admitidos, do momento em que o seu estado e condições de vida contradizem objectivamente aquela união de amor entre Cristo e a Igreja, significada e actuada na Eucaristia. Há, além disso, um outro peculiar motivo pastoral: se se admitissem estas pessoas à Eucaristia, os fiéis seriam induzidos em erro e confusão acerca da doutrina da Igreja sobre a indissolubilidade do matrimónio.”
1991: Numa carta publicada no jornal católico inglês “The Tablet”, o Cardeal Ratzinger clarifica a referência do Cardeal Šeper, de 1973, à “prática aprovada”, sublinhando que este uso do foro interno implicaria um “compromisso a abster-se de relações sexuais”.
2005: O Sínodo sobre a Eucaristia reafirma a decisão de João Paulo II da “Familiaris Consortio”, de 1981.
2007: O Papa Bento XVI, na exortação apostólica “Sacramentum Caritatis”, reitera a decisão do Sínodo de 2005.
2015: O Cardeal Christoph Schönborn, no seu livro “A Vocação e Missão da Família: Documentos Essenciais do Sínodo dos Bispos” dá um exemplo do uso correcto do foro interno: “Se uma mulher, por exemplo, teve um casamento falhado e um aborto, mas mais tarde ‘recasou’ civilmente e agora tem cinco filhos e deseja receber absolvição pelo seu anterior aborto… vocês [padres] não a podem deixar partir sem a libertar do fardo do seu pecado.”
2016: O Papa Francisco escolhe o Cardeal Schönborn para apresentar a exortação apostólica “Amoris Laetitia”, que aconselha os padres a acompanhar aqueles que se encontram em “situações conjugais irregulares” a evitar transformar o confessionário numa “câmara de torturas” ou a Eucaristia como um “prémio para os perfeitos”.
É natural que alguns se questionem, por isso, se não estamos perante uma regeneração da tese de Schönborn.
À luz do Direito Canónico ainda existem usos legítimos para o foro interno na absolvição de católicos divorciados recasados. Se o “foro externo” dos tribunais eclesiásticos não puder ser usado por falta de testemunhas, provas ou simplesmente por indisponibilidade, então o foro interno seria o lugar de último recurso. Também, em casos de morte iminente, um penitente pode receber o sacramento da unção dos doentes e a absolvição.
Mais importante que qualquer foro interno...
Mas aquilo que me preocupa no que diz respeito ao cuidado pastoral de católicos recasados são as vítimas de anteriores casamentos. Nos casos que eu conheço o “recasamento” envolveu o abandono de donas de casa com muitos filhos. Como é que é suposto elas lidarem com o assunto? Como é que os filhos lidam com o facto de o pai os abandonar?
As “viúvas e os órfãos” criados pela prática actual de divórcio sem culpabilidade e as dificuldades de mulheres católicas que ainda se sentem sacramentalmente ligadas ao homem que as abandona são um problema dos nossos dias. Devem sair à procura de um novo marido? Acrescentar mais um nome à lista de “divorciados recasados”?
A Bai Macfarlane dirige uma organização chamada Mary’s Advocates que se dedica “a fortalecer o casamento, eliminar os divórcios forçados sem culpabilidade e apoiar aqueles que foram injustamente abandonados pelos seus esposos”. Um dos seus actuais projectos passa por apresentar petições online para entregar a bispos, pedindo-lhes que intervenham para evitar rupturas e ajudar o potencial abandonador a “recordar as suas promessas matrimoniais e a sua vontade inicial profunda de ser um esposo dedicado”
De certeza que este tipo de acção preventiva é tão importante e legítimo como o recurso ao “foro interno”. Neste Jubileu da Misericórdia seria bom reconhecer que não só os bispos, mas a Igreja como um todo, deve apoiar social, financeira e espiritualmente os esposos injustamente abandonados.
Howard Kainz, retirado daqui
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