04 maio 2016

Crónicas de um pré-doutorando tardio

Na semana que vem farei uma apresentação escolar sobre o livro A Noite e o Riso, de Nuno Bragança, e como a obra se enquadra na classificação de 'romance de formação' (bildungsroman). Um destes dias perguntei a duas pessoas que se tinha cruzadom com ele (uma muito mais do que outra) como era o escritor. A ideia de ambos, parece-me, era coincidente: falava pouco, dizia umas coisas vagas e soltas. Talvez também desconversasse, já não me lembro bem. Não gostaria por ventura de responder a perguntas; é uma característica da família, com origem, não só numa certa aversão à curiosidade pela curiosidade, como também numa vontade, quiçá exagerada, de manter um resguardo de olhares estranhos, mesmo que os olhares estranhos sejam da pessoa que vive ao lado.

Pesquisei algumas coisas na net, movido pela curiosidade e pelo interesse. E encontrei um artigo relativamente extenso no Público (João Bonifácio, 4.12.2008) que refere a dado trecho, referindo-se ao passado do escritor e à sua ligação às Brigadas Revolucionárias: Este é outro aspecto determinante na vida de Bragança: a clandestinidade obrigava-o a um secretismo esmagador.

Não conheci o escritor, mas acho interessante que se possa associar uma característica tão da família à necessidade de resguardar uma vida paralela. Talvez Nuno Bragança fosse assim, quer estivesse ligado à política, quer estivesse ligado ao fabrico de cervejas, onde a confidencialidade é, também, uma certa alma do negócio.

A família de Nuno Bragança, ou pelo menos os que são detentores dessa característica, dar-se-iam bem nos serviços secretos. Não há romantismo nem apego à segurança do Estado - apenas uma tendência natural para não contar coisas.

JdB

***

Criado embora entre hálitos de faisão, cedo me especializei na arte de estender os braços. Dia após dia os mais laboriosos, cansativos forcejos projectavam meus membros anteriores em-frentemente. E isto assim até que perdi as mãos de vista.

Não que o meu sorriso fosse esgar, ou o meu gargalhar inexistente; mas uma certa palidez no semblante geral denunciava (ao que parece) más possibilidades. Foi nessa época que se pôs o problema de eu ser ou não envolvido a fundo nas malhas da F.R.I.P.M.S. (Fundação do Recrutamento Infantil Pró Movimento Selecta). Reunido o Conselho de Família, verificou-se (e registou-se em acta) a ausência do meu tio Augusto, que não pôde comparecer, ocupado, como estava, a violentar a filha menos vesga do jardineiro. Decidiu-se que eu não seria imediatamente recrutado: a debilidade era o meu forte. Foi-me oferecido um gato de peluche e, como nesse dia perfiz cinco anos, assim terminou a minha recuada infância.

Nuno Bragança (in A Noite e o Riso)

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