26 dezembro 2008

naqueles tempos, em que os anos oitenta faziam já a curva que antecede a recta onde se anunciavam os anos noventa, andava a pensar, como sempre andava, nos inúmeros afazeres a que a sua intensa vida profissional o obrigava. não era, como na série, um 'veterinário de província', mas andava lá perto. dava assistência técnica, espécie de consultoria profissional, a dezenas e dezenas de pequenas explorações agropecuárias, um pouco por toda a zona centro do país.
a azáfama pré-natalícia ainda não era bem aquilo que é hoje, mas o facto de normalmente o natal o obrigar a deslocações familiares, tornava aqueles dias particularmente ocupados. mil e uma coisas para fazer, pé-na-tábua, trilhando as estradas nacionais, concelhias, locais, da região, metendo por atalhos pouco conhecidos, enfim tentando esticar o tempo, naquele jeito bem português de equilibrar o impossível.. e conseguir.
era já noite, como é próprio dos fins-de-dia de dezembro, na beira alta. ainda há pouco o sol brilhava e já havia caído uma muralha negra sobre as serras, as casas, as estradas, as gentes. ele gostava. sempre gostou do que é próprio. seja lá o que isso for sobre o que for. à antiga, de certa maneira.
era já noite, dizíamos, quando avistou os dois vultos na beira da estrada. ao passar por eles, olhou para o retrovisor e, enquanto o carro se afastava, fixou o olhar naqueles dois corpos, envoltos em capuchas, combatendo o frio e o escuro da noite como podiam. desapareceram, ao fim de uns segundos, como sempre desaparecem os estranhos que olhamos, nas estradas da vida. seguiu viagem, que era tarde.
uns minutos depois, lembrou-se de qualquer coisa. ou melhor, o seu cérebro parecia ter acordado, de uma forma estranha. enquanto conduzia, era como se aqueles dois vultos lá de trás se projectassem agora à sua frente - coisa estranha. reparou então que um era claramente de um adulto, mas que o outro era de uma pequena criança - como fora possível ter-lhe escapado? lá fora, as serras estavam cada vez mais pintadas de negro e o vento assobiava, como só nas serras sabe assobiar, tornando-se vivo.
parou o carro na berma da estrada. olhou para um lado e para outro. fez inversão de marcha.
poucos minutos depois, avistou, em sentido contrário, os dois vultos que continuavam a sua jornada, como podiam. devagar, o vulto adulto protegendo o vulto mais pequenino. jurava que era assim que os seus olhos viam.
abrandou, ao lado dos caminhantes. abriu a janela do lado oposto ao seu e disse:
- boa noite. a senhora quer que a leve a algum lado?
a senhora, uma mulher via agora claramente, abeirou-se do carro e respondeu, com o olhar titubeante que os humildes muitas vezes têm, estranha declinação da palavra respeito:
- boa noite, meu senhor. vamos lá para a frente, para a aldeia. se o senhor assim puder..
- sim, entrem, por favor.
descortinou os olhos de um pequenito, transido de frio e de medo. ficou triste, por um segundo, como poderia ele inspirar medo.. mas logo ali perguntou:
- na estrada, com este frio? e está tão escuro.
- tem que ser, meu senhor. muito obrigada. sabe, enquanto caminhávamos, o meu filho dizia qualquer coisa. quando me acerquei dele, o pobrezinho dizia: 'oh, meu Jesus, manda-nos um carro; oh, meu Jesus, mando-nos um carro'.. e Jesus mandou, meu senhor.
engoliu em seco. e, em silêncio, num silêncio brilhante, conduziu-os a uma aldeia próxima.
dias depois, contou esta história aos seus filhos e sobrinhos. ele que nem era propriamente uma pessoa religiosa, resolveu contar essa história. houve, desde esse dia, pelo menos duas pessoas que nunca esquecerem esse Natal. ou quatro, contando com um vulto adulto e outro mais pequenito. ou Cinco.
'o que fizeres ao mais pequenino dos teus irmãos, é a Mim que o farás.'
(dedicado a meu pai, que me contou, bem como às minhas irmãs e primos, esta história, numa véspera de Natal.)

gi

2 comentários:

Anónimo disse...

comovente esta linda história e tão actual ! poderá ser contada de pais para filhos, gerações em gerações e continuará sempre tão actual. A mensagem, claramente, é: está atento àqueles que cruzam o teu caminho. Obrigada gi por esta linda história.
Maranathá. Bom Natal

Anónimo disse...

Inesquecível, de facto! RF

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