02 janeiro 2015

Livros dos dias que correm

Meu bom Deus, para não perder o rumo, vou refletir acerca da Fé, da Esperança e da Caridade. Comecemos pela Fé. Das três, é a que me causa mais sofrimento mental. Em todas as fases deste processo educativo, dizem-nos que é uma coisa ridícula, e os argumentos soam tão credíveis que é difícil não lhes cedermos. Os argumentos talvez não soassem tão credíveis a alguém com uma mente mais profícua; mas os meus mecanismos mentais são o que são, e estou sempre no limiar da anuência - é quase uma anuência subconsciente. Pois bem, como hei de eu conservar a minha fé sem cobardia quando estas condições me influenciam assim? Não consigo decifrar as profundezas particulares da minha pessoa que fazem luz sobre isto. Há qualquer coisa no mais recôndito de mim - é mais fundo do que a anuência subconsciente - que nutre um determinado sentimento a este respeito. Talvez seja isso o que me refreia. Meu bom Deus, por favor, faz que seja isso em vez da tal cobardia que os psicólogos examinariam com tanta avidez e explicariam com tanto desembaraço. E, por favor, não permitas que seja aquilo a que, tão alegremente, eles chamam compartimentos estanques. Oh, Senhor, peço-Te, concede às pessoas como eu, que não têm a inteligência necessária para lidar com isto, peço-Te, concede-nos uma qualquer arma, não para nos defendermos deles, mas para nos defendermos de nós próprios depois de eles nos terem examinado de fio a pavio. Meu bom Deus, não quero descobrir que inventei a minha fé para satisfazer a minha fraqueza. Não quero ter criado Deus à minha própria imagem, como tanto se diz por aí. Por favor, concede-me a graça necessária, oh, Senhor, e faz que não seja tão difícil de alcançar como Kafka dá a entender.

14/4/47
Tenho de escrever que irei tornar-me artista. Não no sentido da fancaria estética, mas no sentido do engenho estético: caso contrário, sentirei a minha solidão constantemente  - como hoje. A palavra engenho cobre o ângulo do trabalho e a palavra estética cobre o ângulo da verdade. Ângulo. Vai ser uma vida inteira de luta sem atingir a consumação. Quando qualquer coisa está concluída, não a podemos possuir. Nada podemos possuir, exceto a luta. Consumimos todas as nossas vidas em possuir a luta, mas somente quando acarinhamos essa luta e a orientamos para uma consumação final exterior a esta vida é que ela tem algum valor. Quero ser a melhor artista qu eme seja possível, sob a batuta de Deus.
Não quero sentir-me solitária toda a vida, mas as pessoas, ao recordarem-nos de Deus, apenas acentuam a nossa solidão. Meu bom Deus, por favor, ajuda-me a tornar-me uma artista, por favor, faz que isso me aproxime de Ti.
Flannery O'Connor, In "Um diário de preces"

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