12 fevereiro 2015

Da confissão

A obrigatoriedade da confissão anual para os católicos tem cerca de 800 anos. Não sendo historiador, vou presumir que o hábito perdeu força com a minha geração. Olho para trás e, até há dez anos, talvez, não tenho gratas memórias deste sacramento: eu a querer despachar, os padres nem sempre pedagógicos, igrejas frias, uma correnteza de gente à espera e a cronometrar os tempos de permanência alheia no confessionário, uma ergonomia má, porque os joelhos sofrem apesar do estofo almofadado. A confissão era uma obrigação mas talvez fosse, acima de tudo, um imperativo de consciência. Entrava-se sofrido, saía-se aliviado. Entre uma coisa e outra pouco ficava, porque tudo era muito impessoal - menti, roubei, fui orgulhoso, toma lá uma penitência. Próximo. 

Talvez a confissão passasse a ter, a partir de uma certa altura, uma dimensão excessivamente humilhante. Não o sendo, em bom rigor, seria isso que as pessoas sentiam, acrescido do facto de haver alguma desconfiança quanto à autoridade do padre (quando os havia para nos ouvirem, numa certa altura) em dar-nos a absolvição. A consciência individual, o diálogo directo do pecador com o seu Deus passou a ser um argumento forte, com todos os riscos que isso comporta. A confissão - ou sacramento da reconciliação, para ser mais correcto - caiu em desuso, embora talvez recupere alguma força com a habilidade dos confessores.

Ora, a confissão tem uma dimensão terapêutica que merece alguma atenção. Confessamos as nossas faltas, o que nos é desconfortável e incómodo - o orgulho, a inveja, a falta de caridade, as obsessões e fragilidades que dificultam a vida aos nossos mais próximos, os rancores. A absolvição é um sinal - porque todo o sacramento é um sinal da presença de Deus. Mas o efeito benéfico de referirmos o que nos corrói por dentro tem uma dimensão terrena, humana. Confessarmos é procurarmos o equilíbrio: na nossa relação vertical, mas na nossa relação horizontal. Quando numa reunião de adictos alguém profere a célebre frase boa noite, eu sou fulano e sou..., está aparentemente a confessar uma fraqueza. Na verdade, muito mais do que a fragilidade da sua dependência, está a afirmar o seu propósito de cura. Pela primeira vez, esse fulano trouxe à luz do dia uma debilidade e, nesse preciso instante, a fraqueza fica iluminada, perde o seu carácter de habitante das trevas e ganha um protagonismo para cujo combate ninguém caminha só.

Confessamo-nos numa igreja a um padre. Mas também nos confessamos por escrito a um amigo, no escuro de um quarto a quem connosco vive, num almoço onde o prato principal é, tantas e tantas vezes, o que nos aflige por dentro, aquilo que em nós mata a luz dos outros. Dizermos metaforicamente boa noite, eu sou fulano e sou... pode ser o princípio de uma caminhada redentora. É uma espécie de desnudamento da alma para que ela se revista de outra roupagem. É a evidência da nossa humanidade tantas vezes débil, que procura a perfeição. Não é um momento de fraqueza, mas de força. 

Como me dizia ontem alguém cuja amizade prezo e cuja inteligência invejo, somos mais de socorrer ao grito do que gritar por socorro. O mundo atira-nos para um ideal de força e poder que é incompatível com o reconhecimento da fragilidade própria. Talvez por isso nos confessemos tão pouco. E talvez por isso percamos a oportunidade de um enriquecimento interior. 

JdB          

1 comentário:

Anónimo disse...

A confissão é o tal grito de socorro que o orgulho e o medo estrangulam na maior parte das vezes.
O anúncio público do adicto, é a determinação para a redenção, recusando tanto a caridade da amnistia como a crueldade da execução, por isso é entre iguais e não perante os piedosos ou os justiçeiros.

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