
JdB
As melhores viagens são, por vezes, aquelas em que partimos ontem e regressamos muitos anos antes
Hoje era dia de gi publicar o seu post. Razões ponderosas não o permitem, mas onde está, está bem. Fica a Cesária Évora, a cantar petit pays, je t'aime beaucoup. E não está sozinha, seguramente.
JdB
Mónica Bello
Um renque colorido de lâmpadas no tecto; posters e recortes de revistas a enfeitar paredes brancas; uma nódoa persistente de óleo no chão que a vontade não venceu; meia dúzia de cadeiras displicentes espalhadas pelo local; uma música que sai de um gira-discos porque alguém puxou um braço de agulha para trás e o assentou sobre um vinil que roda a 33 rpm – ou 45, conforme. Chego-me a ti e pergunto-te se queres dançar. Os meus olhos fogem-te de nervos e ansiedade mas estou certo (há no amor o dom de uma certeza, sabes? Foi uma escritora que o disse, e quem escreve assim não mente, apenas pinta o mundo com as letras com que o vê) de que irás sorrir-me de volta, naquela cumplicidade inocente e ainda incompreensível. Claro que sim, respondeste, como quem se questiona se haverá mais alguma coisa a fazer que tenha sentido nos minutos mais próximos. Nós os dois numa garagem, como se mais nada houvesse, como se tudo se esgotasse numa rapariga que cantava we were so close, there was no room. Um cabelo comprido castanho, apartado ao meio e tombado sobre uns ombros largos; duas almas juntas na promessa de um beijo; olhos fechados, cegos para a finitude das coisas; respirações compassadas de quem vive por igual; uma música que pára porque alguém levanta um braço de agulha de um vinil que roda a 33 rpm – ou 45, conforme. Dançámos tão juntos que me deixaste marcas na alma. E é também por isso que te voltarei a convidar para dançar, nesta ou noutra garagem, com outras luzes coloridas, outras cadeiras displicentes, outra nódoa persistente que a vontade não venceu.
JdB
Já vai longa a nossa história. Tu tens séculos para contar e eu décadas. Quando me acolheste era ainda uma menina. Vinha de outro hemisfério, de paisagens cheias de sonhos. Tomaste-lhe tu o lugar. Eras a terra prometida. A saída. O horizonte onde os dias haveriam de medrar. Que o passado, por amor à vida, passado era.
Em ti cresci o maior bocado de que tenho memória. E aprendi que embora aos homens fossem destinadas diferentes sortes, tu te davas de igual modo a todos eles. Nunca tiveste reservas, era essa a tua lei. Talvez por isso depressa me apaixonei.
Foram anos e anos de repimpados banquetes, de apetitosas orgias debaixo desse teu céu. Nos invernos mais gelados, em infinitas Primaveras, a cada tórrido verão, que invariavelmente acabavas em cores de palha e com milhares, milhares de folhas pelo chão. Ainda havia essa Estação...
Ensinaste-me o teu cantar e os seus passinhos de dança. Que pujança! Mostraste a que cheiram as ervas daninhas, o valor de uma colheita, o sabor em que terminam as tuas vinhas. No som de várias enxadas a guiar os ribeirinhos, o rigor de cada trabalho, e a alegria dos domingos.
Eras uma vila airosa, onde todos se falavam. Na ponte, no rio, no largo, no chafariz, até na feira, ainda que aos gritos apregoasse uma tendeira, era esse o teu cariz. Não há pronúncia mais bela em todo o Vale do Lima e onde a língua portuguesa, mesmo em dorida expressão, teime entoar uma canção.
Hoje trazes novidades. Foste à cidade beber? Para mim ainda és a mesma, sempre, sempre o hás-de ser. A brisa fresca, a verdura insinuante, os campos até ao rio, montanhas até ao céu, a saia de florinhas, bordada a muros de pedra. Para mim, és sempre a mesma, desde aquele primeiro dia em que me deitaste a mão.
Já não tenho aquela força de te correr dia a fio, de subir a cada galha, de aguentar a geada, de amassar uma fornada. Resta-me, vila, olhar-te serenamente. Dizer para dentro de mim “ai soubesse as pândegas que já vivemos, esta gente...”. Agora é que sou fidalga. Repouso pelos relvados, à sombra dos castanheiros, em vez do Vira, ouço Fados.
Não estou diferente, senhora. Estou cansada, quero mimos. E quem melhor do que tu, meu vale, para me curares a saudade e cuidares dos meus meninos? Mostra-lhes o que me ensinaste, sem que eu tenha de falar. Sopra-lhes tu aos ouvidos, reflecte nos seus peitos o que tens para lhes dar.
Deus te guarde, Deus os guarde. Que de ti se enamorem. Eles e todos os outros. Esses que por aqui vêm, sedentos de paraísos, procurando uma razão que lhes perfaça os sentidos. Isso para ti é fácil, não sabes tu outra coisa. Dá-lhes mais uma malguinha, serve-lhes o prato cheio, deixa-os debaixo da ramada encostados a um esteio. Uma coisa te garanto. Regressam agradecidos, esquecidos de todo o pranto.
DaLheGas
JB