06 dezembro 2010

Vai um gin do Peter's?

Depois de tanto já ter sito dito sobre o filme DOS HOMENS E DOS DEUSES(1), maximamente interpelativo e merecidamente premiado (candidato a Óscar de Melhor Filme Estrangeiro em 2011), vou deter-me numa ária da espantosa banda sonora e, a partir daí, desfiar um pouco a trama de vidas apanhadas nos agitados anos 90 da guerra civil argelina, sem quebrar o suspense.

No momento clímax da película há duas novas personagens presentes num jantar histórico e derradeiro, no mosteiro de Nossa Senhora do Atlas, onde se cruzam todas as cumplicidades. Ali convergem os esforços de sobrevivência dos religiosos franceses. Ali se corrobora, pela amizade profunda que dispensa palavras, a decisão individual mas comum a todos, partindo de pontos tão distintos quanto as suas diferentíssimas personalidades. A perseguição fora-se adensando! Vivia-se, literalmente, ao fio da espada. De uma espada sedenta de sangue. As sortes pareciam estar lançadas…

Mas, estranhamente, não há nada de negativo nem de estéril na forma como vivem o cerco que se vai cerrando à sua volta. Um cerco a que não se esquivam por máxima generosidade pessoal ao pedido da pequena aldeia muçulmana, que se sentia protegida pela fé bondosa que irradiava do mosteiro. Sim, não há a mais leve apologia do martírio ou alguma vaga decepção com a vida, género capitulação passiva. Até nisso, é de uma grandeza incrivelmente saudável!

O monge-médico com os seus amigos doentes


Nessa última ceia, uma das duas novas personagens é o monge itinerante (talvez um dos superiores daquela ordem francesa(2)), que furara as várias barreiras militares ao longo do caminho, esgueirando-se até ao mosteiro incrustado nos contrafortes do Atlas argelino. Vem carregado de presentes, em boa verdade destinados, sobretudo, aos aldeãos paupérrimos que os monges cuidavam.

A segunda personagem, à Victor Hugo, é a célebre ária do Lago dos Cisnes, prenunciadora do final de um conto que Tchaikovsky escrevera e compusera para a sua irmã mais nova, inicialmente com happy-end. Só depois da morte do compositor, a peça musical –ainda pouco reconhecida pelo público– adquiriu um desfecho negativo, tornando-se de imediato um êxito de bilheteira. E foi na versão negra que entrou para a história das grandes composições orquestrais para ballet, somando duas expressões artísticas onde os russos são magistrais.

Curiosamente, a metamorfose do Lago dos Cisne – sonhada para ser uma narrativa infantil benigna e q.b. aventurosa, onde tudo deslizaria em sonoridades diáfanas– de algum modo, parece ter-se tornado a própria metáfora da vida dos monges radicados no Magrebe profundo. À obra musical houvera a intenção expressa de conferir dramaticidade, aproximando-a da vida. Esse o motivo por que se introduziu uma nota discordante e de repercussões indomáveis no curso da história, convertendo-a em tragédia.

Para os monges houvera apenas a intenção de corresponder ao papel que os vizinhos de Tibhirine lhes atribuíam, enquanto guardiães da aldeia, o ramo onde eles (aldeões) podiam pousar, com confiança, no dizer de uma local… Sempre reinara a paz e a amizade com a comunidade islâmica, que tinha crescido graças ao mosteiro. A nota discordante fora introduzida por elementos estranhos à aldeia, que grassam na desordem, dominam pelo terror e são insaciáveis a reclamar sangue… alheio, claro! De preferência, dos mais frágeis, dos desarmados. As suas reivindicações vêm sempre mascaradas de justiça, embora redundem numa farsa para branqueamento de imagem perante terceiros, a quem um dia poderão ter de prestar contas. Sim, quase sempre estas hostes de desordeiros cruéis planeiam o futuro ao milímetro (à sua maneira) e são mais calculistas do que uma certa imagem de idealistas espontâneos possa fazer crer… Ainda assim, são memoráveis alguns dos diálogos entre os guerrilheiros e os monges, num dos raids ao mosteiro, onde o superior demonstrou uma dignidade heróica, sem se deixar intimidar pela lei da bala. E isso permitiu uma conversa muito autêntica, que sensibilizou um coração até ali entorpecido pela supremacia da pólvora mortífera.

O monge Christian C. e um dos terroristas


É espantosa a mensagem deixada escrita pelo superior do mosteiro (Christian de Chérgé, a assinar em árabe!) pedindo às gerações vindouras para reconhecerem a inocência do povo argelino – que os monges tanto amam – e do próprio islamismo, no crime que os espreita. Até aos assassinos irá perdoar por antecipação!

No filme, o Lago dos Cisnes como que entra em cena a par de duas garrafas de vinho para, em conjunto, abrilhantarem a festa. Foram pousadas, suavemente, na longa mesa conventual pelo monge-médico: um bondoso velhinho, cheio de salero, que não hesitava em descompor os terroristas, mas brincava com as crianças e era incansavelmente meigo com os doentes desvalidos que acorriam ao seu consultório como à casa de um avô sábio.

O brinde decorre com sobriedade, em ambiente de imensa alegria e fraternidade, também regada com lágrimas, comovidos pelo pressentimento da hora que festejam por inteiro, em jeito de hino à Vida, sem negar tudo o que ela envolve – morte incluída, como condição incontornável da humanidade. Aclamam a Vida com a mesma grandeza com que acolhem tudo o que lhes toca viver, até mesmo um final injusto e vil. O medo, tão humano, não lhes ensombra aquele momento de máxima união entre os nove, como um grupo de alpinistas a partilhar a conquista do cume, em grupo! Um feito desbravado através da amizade e da entreajuda.




Significativamente, um dos títulos de um artigo sobre o filme realçava: «A beleza do humano». A mim, ocorre-me dizer: Dos homens que viraram deuses. Porque ficam tingidos de divindade todos quantos entregam a sua vida em favor dos pobres, que imploraram a sua presença… até ao último respiro. Os monges não conseguiram faltar-lhes. Sempre tinham aceite os convites dos seus amigos muçulmanos: para as festas locais, para a partilha do dia-a-dia, proporcionando óptimas conversas, simplesmente para serem um com eles. Deixara de haver espaço para recusar partilhar – em igualdade de circunstâncias com os mais frágeis – o tsunami devastador que ia alastrando pela região.

Sabemos, nos últimos minutos do filme, que dois monges sobreviveram, tendo assim podido assegurar maior fiabilidade às imagens sobre a realidade monástica e a guerrilha.

Testemunhos sobre o filme:

- Do próprio realizador, Xavier Beauvois, que se auto-descreve como um não-crente em busca: «Estou a envelhecer. Reflicto sobre o sentido da vida. Este projecto chegou em boa altura. Documentei-me muito sobre eles, tentei saber quem eles eram. Ao descobri-los fui ficando seduzido, apaixonado por eles. E em seguida toda a equipa, de actores a técnicos, viveu estes mesmos sentimentosDantes pensava que nada podia ser mudado, os irmãos de Tibhirine ensinaram-me que não é assim

- Do actor que interpreta Christian no filme, Lambert Wilson: «A simplicidade é um dom… Creio que a simplicidade e a santidade são uma e a mesma coisa. Uma coisa é certa: Tibhirine era um local de simplicidade

- De Jean-Marie Rouard, membro da Academia Francesa, ao Paris Match (30.Set.2010): «É como se os monges nos tivessem despertado de um sono prolongado. Como se a sua morte nos fizesse pressentir a existência de uma outra vida... Estes monges de um convento do Atlas argelino abriram(-nos), de repente, uma porta para um infinito que ninguém supunha possívelaumentaram aquele capital anímico sem o qual a humanidade se arrisca a asfixiar. Graças a eles podemos voltar a respirar. Legaram-nos um bem sumamente precioso: a sua esperança.»

- Do crítico de cinema, Jorge Mourinho, para a Ípsilon: «A partir de uma história verdadeira de terrorismo, o francês Xavier Beauvois faz um filme sobre o que de mais humano há em nós… abre portas para um olhar sobre a essência das coisas… É um filme de resistência: de resistência ao medo, de resistência ao desconhecido, de resistência a tudo aquilo que nos rouba a humanidade (e, por consequência, nos rouba também o divino que há em nós - porque a verdadeira fé, que implica sempre a dúvida, é algo de profundamente humano). Estes monges… nunca são erguidos a mártires nem a heróis.»

E o testemunho de cada um de nós?...

Maria Zarco

(a preparar o próximo gin tónico, para daqui a 2 semanas, numa Segunda-feira)

__________________________

(1) FICHA TÉCNICA

Título Original: Des hommes et des dieux

Realizador: Xavier Beauvois Argumento: Étienne Comar

Elenco: Lambert Wilson, Michael Lonsdale, Olivier Rabourdin, Philippe Laudenbach

Fotografia: Caroline Champetier Som: Jean-Jacques Ferran e Éric Bonnard
Montagem:
Marie-Julie Maille Produção: Why Not Productions e Armada Films
Duração:
2h02 Origem: França.

Distribuidor em Portugal: ZON Lusomundo.

NOTA SOBRE A HISTÓRIA – os factos ali reportados respeitam à guerra civil dos anos 90, na Argélia, que opôs as tropas do governo a grupo islâmicos fundamentalistas.

Presença em festivais:
- Festival de Cinema de Cannes (2010) –
Grande Prémio
- Festival de Cinema de Munique (2010)
- Festival de Cinema de Karlovy Vary (2010)

(2) Ordem Cisterciense da Estrita Observância.


6 comentários:

Anónimo disse...

Um belo texto para uma magnífica sugestão aqui deixada há uns dias pelo dono do estabelecimento. Ainda não vi, mas tenho a maior curiosidade. Gostei, sobretudo, dos testemunhos publicados. De facto, a Verdade não tem fronteiras. É tão humana, e tão intangível (como a música? - mal comparado) que não há quem não a sinta, mesmo não a compreendendo. Obrigada, MZ. pcp

Anónimo disse...

Obrigadíssima, pcp, pelo teu comentário sempre tão encorajador. Bjs, MZ

Anónimo disse...

Só agora pude ler o seu texto, que é excepcional!
Será imperdoável falha minha se não vir este filme.
Obrigado,
fq

Anónimo disse...

Acho q. vai adorar o filme, fq, porque é muito rico e subtil, ao mesmo tempo. Aliás, não é por acaso que estava a fazer imenso furor em França. Bjs, MZ

Anónimo disse...

Acho q. vai adorar o filme, fq, porque é muito rico e subtil, ao mesmo tempo. Aliás, não é por acaso que estava a fazer imenso furor em França. Bjs, MZ

Anónimo disse...

Acho q. vai adorar o filme, fq, porque é muito rico e subtil, ao mesmo tempo. Aliás, não é por acaso que estava a fazer imenso furor em França. Bjs, MZ

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