"Em casa onde não há pão, todos falam e ninguém tem razão". Este ditado popular aplica-se na perfeição a todos os comentários que se lêem e ouvem acerca da despesa do Estado português. Já há muitos anos que se tem vindo a bramar contra os salários dos políticos em exercício e contra as pensões atribuídas aos ex-governantes. É evidente que, num país com recursos limitados, débil clima económico e finanças públicas descontroladas, os políticos poderiam dar o exemplo ao cortarem nos seus salários e abdicarem das pensões vitalícias, quando ainda exercem uma profissão no privado. Contudo, é perigosa a ideia que paira. O povo está convencido de que o grosso da despesa é gasta para o efeito que enunciei. Para que se saiba, são 396 os ex-políticos com direito a pensão. No OGE 2012 estão previstos 7,8 milhões de euros para pagar as ditas pensões. A despesa do Estado ascende a 48,8% do Produtos Interno Bruto. Quero com isto dizer que, se o propósito for moral, o corte nos benefícios à classe política é meritória. Mas se essa for feita com um objectivo economicista, passa a irrelevante.
Hoje é Domingo, e eu não esqueço a minha condição de católico.
Todos os evangelhos têm o seu quê de desafiante, e o de hoje não foge à regra. Lê-lo e relê-lo faz-nos imensamente bem, não porque nos conforte ou nos dê alegrias imensas, mas porque nos impele a perceber o que é verdadeiramente importante, dá-nos a perspectiva certa para algumas coisas.
Somo sum país pequeno do ponto de vista da mentalidade. Detestamos ver o sucesso nos outros, encontramos sempre uma potencial desonestidade na forma como ele terá sido atingido. Por outro lado, temos um ego por vezes demasiado grande, sentimos que precisamos de estatuto, de importância, de reconhecimento, de poder. Envaidecemo-nos com trivialidades e minudências, gostamos de mostrar aos outros o que fazemos - e como o fazemos bem.
A noção de serviço é uma ajuda preciosa para reposicionarmos as nossas prioridades e a nossa forma de actuar em sociedade. No outro dia, em representação da Acreditar numa reunião em que se falava de oncologia pediátrica, mencionei esta dimensão. De facto, um dos problemas das nossas instituições de solidariedade social é a necessidade de protagonismo que nos põe, tantas vezes, de costas voltadas uns para os outros. As associações fazem solidariedade, os cristãos caridade. A diferença das palavras é meramente política, porque no fundo dedicamos-nos todos ao mesmo: ajudar (servir) o próximo. Quando nos desviarmos desta perspectiva, desviamo-nos do essencial.
É fundamental cultivar esta ideia do serviço (que arrasta consigo a obrigatoriedade de discrição e não-evidência). Gostava de achar que por trás há uma procura do caminho da santidade. Infelizmente talvez seja, apenas, uma manifestação de egoísmo, porque permite olhar para os escribas e para os fariseus, e também para aqueles que se arrogam o direito de serem tratados por doutor ou por mestre, com um olhar tranquilo e pacífico. No fundo no fundo, não querer saber quem alarga os filactérios e amplia as borlas. O que verdadeiramente nos importa é que não façamos nada para ser visto pelos homens.
Bom Domingo para todos.
JdB
EVANGELHO
– Mt 23,1-12
Naquele
tempo, Jesus falou à multidão e aos discípulos, dizendo:
«Na
cadeira de Moisés sentaram-se os escribas e os fariseus.
Fazei
e observai tudo quanto vos disserem,
mas
não imiteis as suas obras,
porque
eles dizem e não fazem.
Atam
fardos pesados e põem-nos aos ombros dos homens,
mas
eles nem com o dedo os querem mover.
Tudo
o que fazem é para serem vistos pelos homens:
alargam
os filactérios e ampliam as borlas;
gostam
do primeiro lugar nos banquetes
e dos
primeiros assentos nas sinagogas,
das
saudações nas praças públicas
e que
os tratem por ‘Mestres’.
Vós,
porém, não vos deixeis tratar por ‘Mestres’,
porque
um só é o vosso Mestre e vós sois todos irmãos.
Na
terra não chameis a ninguém vosso ‘Pai’,
porque
um só é o vosso pai, o Pai celeste.
Nem
vos deixeis tratar por ‘Doutores’,
porque
um só é o vosso doutor, o Messias.
Aquele
que for o maior entre vós será o vosso servo.
Há pessoas que perdem a cabeça com chocolate; em compensação ganham barriga.
Eu quero amar amar perdidamente nasceu de uma tentativa de slogan para um produto vindo de umas algas e que dizia assim: eu quero agar-agar perdidamente.
Portugal nunca será competitivo enquanto tiver como ministro da Economia o ÁLVARO; quando muito será competivo, palavra que já ouvi pelo menos duas vezes ao referido senhor. Será que também diz toxidade em vez de toxicidade?
Hergé, o criador de Tintin, pode vir a ser processado por plágio; em Portugal, há muito que temos o tim tim por tim tim.
Chamar à colação será o mesmo que dizer venham jantar?
D. Afonso Henriques fundou Portugal. A política afundou Portugal.
Televisão. Anteontem, em representação da Acreditar, fui à televisão fazer um
directo, como se costuma dizer. A vida é assim, e o pouco que dou à Acreditar é
isto: 40 minutos de carro para lá, três minutos de intervenção após 20 de
espera, 40 minutos de carro para cá. À saída, uma rapariga nova, da Produção, e que me
acompanhou, pergunta-me o que tinha achado. Respondi: não gostei. Aliás,
nunca gosto. O enervamento, sabe, e acho que estive mal... Retorquiu-me
ela, sempre simpática e educada: pois, eu percebo. Mas diga-me uma coisa:
vocês na faculdade não aprendem estas coisas? Não me feneceu a educação nem
a simpatia, mas não deixei de lhe dizer: sabe, formei-me em engenharia em
1984. Acha que nessa altura alguém, no ISEL, se preocupava com técnicas de
comunicação?
Livro (I). Janto com amigos onde é
referido o último livro de José Rodrigues dos Santos, cujo título não tenho
presente. Alguém refere as qualidades de investigador do jornalista escritor.
Dois dias depois recebo um artigo demolidor, publicado no Secretariado Nacional
da Pastoral da Cultura, que pode ser lido aqui. Transcrevo o último
ponto, sabendo que haverá algo a alegar em defesa de JRdS: Resumindo: é lamentável que José
Rodrigues dos Santos interrogue (e se interrogue) tão pouco. É lamentável que
escreva centenas de páginas sobre um assunto tão complexo sem fazer ideia do
que fala. O resultado é bastante penoso e desinteressante, como só podia ser:
uma imitação requentada, superficial e maçuda. O que a verdadeira
literatura faz é agredir a imitação para repropor a inteligência. O que José
Rodrigues dos Santos faz é agredir a inteligência para que triunfe o pastiche.
E assim vamos.
Livro (II). Leio, entremeado com outro, Pai-Nosso que estais na Terra (José
Tolentino Mendonça, Ed. Paulinas, 2011). Partilho convosco um excerto que me
tocou por motivos óbvios: um dos textos
mais impressionantes sobre o valor da escuta é o conto “Tristeza” de Tchékov. Conta
a história de um cocheiro, Iona, que perdeu um filho e não encontra, entre os
humanos, ninguém disponível para o amparar. «Precisa contar como o filho
adoeceu, como padeceu, o que disse antes de morrer e como morreu... Precisa
descrever o enterro e a ida ao hospital, para buscar a roupa do defunto. Na
aldeia, ficou a filha Aníssia... Precisa falar sobre ela também...», mas
ninguém o ouve. O cocheiro volta-se então para o seu cavalo e enquanto lhe dá
aveia começa a expor-lhe, num longo e dorido monólogo, tudo o que viveu. E as
últimas palavras do conto são estas: «O cavalo foi mastigando, enquanto parecia
escutar, pois soprava na mão do seu dono... Então Iona, o cocheiro, animou-se e
contou-lhe tudo». E nós, a quem nos vamos contar?
Músicas dos dias que correm, enviado por mão amiga:
Através da etimologia grega da palavra os astrólogos são as pessoas que
mantêm um dialogo (logos = falar, pensar, perceber) com as estrelas (astros). Estudamos
símbolos planetários que depois traduzimos em linguagem corrente para um maior
entendimento do que se passa na nossa vida e na dos nossos clientes e no mundo
em geral.
Na prática do dia-a-dia durante as consultas e sempre com o objectivo dar
mais escolhas aos meus clientes:
·Confirmo pontos fortes e fracos da personalidade
·Ajudo a descobrir um propósito de vida
·Sugiro o significado de períodos de crise, a melhor
maneira de os viver, e sobretudo quando esses períodos têm tendência para
acabar
·Indico as épocas mais apropriadas para fazer mudanças de
carácter profissional e pessoal
·Esclareço padrões de relacionamento, blocos psicológicos,
reacções emocionais que provocam problemas repetidos
De vez em quando surgem clientes que me fazem duvidar das minhas
capacidades de lhes melhorar a vida.
Há umas semanas uma amiga, daqui para a
frente designada por S, resolveu
oferecer a uma sua colega uma consulta astrológica. S,
por experiência própria, tem confiança na minha capacidade de conselheira e nos
meus conhecimentos de astrologia. Quando me telefonou contou-me que a pessoa a
quem gostaria de oferecer a consulta, daqui em diante designada por V, tem tido uma vida difícil a vários níveis
e está com dificuldade em ver que caminho seguir.
Não sendo bruxa, nem tendo bola de
cristal peço aos futuros clientes que me escrevam um texto contanto um pouco da
sua vida e as suas preocupações de momento. Assim, posso antes da consulta debruçar-me
com calma sobre o seu tema e os seus trânsitos. Durante a consulta concentro-me
mais no diálogo, em ouvir, em ligar-me
emocionalmente ao cliente.
O texto de V deixou-me perplexa…inúmeros
e difíceis problemas a nível familiar e sentimental. Acontecimentos perturbantes
como uma queda com consequências graves e ter sido assaltada na rua. E por fim,
no último parágrafo conta-me que lhe foi diagnosticado um tumor (benigno) no cérebro.
Perguntei a mim própria se estaria a altura
do que me era pedido… Como sei que há uma lei divina que só nos manda aquilo de
que somos capazes e lá fiz o meu melhor. Durante a consulta achei que V talvez tinha ficado a sentir-se com
mais controle sobre o seu destino mas como era anglo-saxónica e pouco
expansiva, fiquei com dúvidas.
Poucos dias depois da consulta S telefonou para regularizar o
pagamento e contou-me que V lhe
disse que depois da consulta foi para a cama com um sorriso coisa que não
acontecia há muito tempo.
Proporcionar sorrisos não esta na lista
habitual do que fazem os astrólogos mas fiquei muito feliz por ser mais uma das
atribuições desta minha profissão…
Luiza
Azancot, que estará em Cascais/Lisboa de 5 a 10 de Novembro
Não só
não conheço o Pablo Alborán como nunca lhe tinha ouvido o nome. Tenho uma ideia
menos do que vaga da nacionalidade do cavalheiro e não sei onde se enquadra
musicalmente, embora reconheça que este desconhecimento é totalmente irrelevante
para a riqueza das nações.
Acompanho
de forma vaga a carreira da Carminho, se bem que o único disco que ela terá
gravado esteja incluído no meu iPod. Como fadista não a coloco no pódio dos
meus favoritos, mas, não obstante, oiço-a com prazer.
Até ontem
desconhecia este dueto que vos apresento hoje. Mão amiga fez-mo chegar às mãos
e, dado que me parece ser recente no ciberespaço (expressão interessante mas,
quiçá, tecnicamente desajustada), decidi partilhá-lo convosco, multidão anónima
de bons samaritanos que fazem a infinita caridade de me ler.
Os que me
conhecem melhor sabem deste meu desabafo: felizmente não sou especialista de
nada, pelo que divido a generalidade dos temas entre o gosto e o não
gosto. Gostei do dueto e gostei das imagens de Lisboa. No fundo é
isto...
Sintam-se à vontade para desancar tudo, encher
de críticas acesas a caixinha dos comentários, derramar a vossa irritação
musical (ou outra, em havendo...) sobre estes 4'24'' de sonoridade semi-fadista
com a capital do império pelo fundo. Acima de tudo respeitem o editor e dono deste
estabelecimento. Acho que é o mínimo.
Woody Allen está de volta com tudo o que lhe é próprio,
desde a paixão pela Cidade das Luzes, a uma ideia muito original e figurativa,
que se desdobra num argumento poderoso: «MEIA
NOITE EM PARIS»(1). Ali sobrevoamos os monumentos da
capital francesa e exploramos os seus recantos de charme, na perspectiva de um
parisiense boémio ou de um estrangeiro totalmente aculturado. Um passeio que
mergulha na história riquíssima do que já foi o epicentro da cultura ocidental
(até à Segunda Guerra Mundial).
O filme abre com uma visita panorâmica pela cidade, sob o
azul grisalho do céu de Paris, terminando numa noite gloriosa, com milhentas
luzes a fervilhar na escuridão. Lindo. Depois, em ecrã escuro, ouvimos um
diálogo carregado de humor e ironia, que só podia ter sido escrito por W.Allen.
Reunidos numa cidade apaixonante para ultimarem os preparativos do seu
casamento, o desencontro de ideias entre os noivos não nos deixam quaisquer
dúvidas sobre a distância imensa que os separa. Transcorridas aquelas primeiras
deixas, já nenhum espectador partilha do equívoco que ainda se arrasta na
cabeça dos noivos, habituados a uma proximidade superficial e ilusória. Tudo
típico das sociedades ricas, em concreto da americana, onde a gente nova costuma
ter liquidez suficiente para projectar uma vida a dois. Só que a vida contenta-se pouco com contas bancárias
folgadas, como nos mostra o realizador.
O protagonista, que no início apenas conhecemos pela voz,
tem o timbre inconfundível de W.Allen, quase numa clonagem do omnipresente
realizador-argumentista, mas com bastante menos idade. Até nisso, W.Allen se mantém
igual, não prescindindo de marcar presença nos filmes que assina.
Voltando a Paris: de um lado, um talentoso argumentista
de Hollywood a querer ser escritor (Gil, o noivo), do outro uma família (da
noiva) endinheirada da classe média americana, da ala republicana mais radical,
tea party ao vivo. Genericamente
provinciana e incapaz de alterar um milímetro o seu comportamento consumista e
de gosto duvidoso. Sempre deslumbrada pela cultura que não tem, nem consegue
interiorizar. Sempre vidrada num património histórico que lhe é e será sempre estrangeiro (na acepção pura e dura de
Camus). Por isso, confunde, facilmente, erudição a metro com o saber profundo,
normalmente menos extrovertido. O «Monsieur pedante» – na alcunha cirúrgica atribuída
a Paul pela personagem encarnada por Carla Bruni – personifica esse novo-rico
intelectual que, como em todas as derivações do novo-riquismo, transborda de exibicionismo
oco e auto-suficiente. Já o simpático clono
de W.Allen (o tal Gil) pretende ser a encarnação do artista genuíno, muito
conhecedor de História, apaixonado pela Cultura e pelos grandes fazedores de Arte. Só que é tudo menos
simples do que isto, ou o realizador não fosse quem é!
Os quatro norte-americanos
em Versailles, com Monsieur Pedante
ao comando
Afinal, Gil até será o mais enredado em equívocos e
preconceitos, agravados por uma atitude falaciosa, que lhe pode comprometer o
futuro. Aqui, W.Allen revela-se no seu melhor, acutilante na auto-avaliação.
Sem poupar críticas ao seu alter-ego, nem a ninguém, embora a exploração do
ridículo se concentre nas personagens mais pretensiosas e arrogantes. Para
essas, tolerância zero.Mas ninguém está isento de erros. Só
que a cada qual o desafio que lhe é devido, à medida da sua personalidade e dos
objectivos mais profundos…
Às badaladas da meia-noite, qual conto de fadas do
avesso, a realidade transfigura-se e, numa antiga ruela parisiense, surge um
calhambeque reluzente. Recuamos, animadamente, para os anos 20, a época adorada
por Gil. O sonho sobrepõem-se à realidade e os desejos irrealizáveis de Gil rolam
pela calçada húmida, ao seu encontro, sob a sonoridade mágica do mesmo sino que,
aos outros, anuncia um novo dia. Mas para o insatisfeito Gil um novo dia seria pouco… Pelo que lhe é oferecida uma segunda
vida. Mas será?...
Gil junto ao Sena, sob o céu da tela de Van Gogh -
«Starry Night» (1889),
que foi pintada no hospício de Saint-Remy. As 11 estrelas
evocam a criação da abóboda celeste, referida nos Génesis (37, 9)
Como sempre, W.Allen joga maravilhosamente com os
exageros das suas metáforas, conseguindo pelo humor alimentar hipóteses que
roçam o estapafúrdio. Só que carregam tanto sonho comum, tanta miragem partilhada
por multidões, que as reconhecemos quase como familiares, apesar da
inverosimilhança. Acabam por compensar em nexo psicológico o que lhes falta em factualidade.
Quem não conhece gente revivalista, sobretudo à medida que se vai envelhecendo?
Mas é tão raro esses apaixonados por outros tempos perceberem o irrealismo da
sua posição, que tende a subestimar as omissões e fraquezas desse outro
período, dramaticamente desfalcado de realidade, desde que foi banido do
presente! Até nos aspectos mais comezinhos, redunda em ilusão escapista. Quem,
por exemplo, abriria mão das possibilidades tecnológicas dos nossos dias –da
saúde, às telecomunicações, passando pela facilidade em viajar – para apenas nomear
o menos importante da vida? Aliás, uma blague
à volta da falta de medicamentos (note-se que W.Allen é hipocondríaco) nesse
passado maravilhoso, ajuda o jovem escritor a cair na real, decepcionando-se com um século onde morrer novo de
tuberculose era a regra. A ironia lembra aquele provérbio chinês: Pensa bem em tudo o que pedes na oração, porque
pode vir a acontecer-te.
Apesar de tudo, quem duvida que seria fascinante receber dicas
de Hemingway, conhecer Fitzgerald e o seu círculo de amigos, frequentar festas
animadas pela voz de Cole Porter, ao piano? Chegar ao cúmulo de ouvir conselhos
de Gertrude Stein e esbarrar com E.M.Foster? Ou numa noite da neura ser
consolado pelo esfusiante Salvador Dali e dar sugestões proféticas a Buñuel? Percebe-se que o primeiro embate nos Vintes tenha
sido inebriante: lustres, flutes de champanhe, boquilhas arrastadas, lamés
faiscantes, longos colares de pérola, diademas coloridos. Sobretudo, ritmo contagiante
ao piano...
Rodeado de miúdas da geração das nossas avós!
Uma constante nesta comédia mordaz dá que pensar: raros
são os que apreciam a sua época, isto descontando os ignorantes e insensíveis que
se satisfazem com dólares e existências padronizadas. Todos, a começar pelos
grandes artistas, mitificam outro período do passado. Esse sim, memorável! Os
dos Anos 20, a Belle Époque; os da Belle Époque, o Renascimento… Difícil é aceitar o presente. Lidar com a
realidade que nos toca, aqui e agora. Quando Gil consciencializa essa
tentação vã, de algum modo reconcilia-se com o presente ou, ao menos, cede-lhe.
Mas nem todos conseguem dar esse passo de coragem, pelo que regridem para a fantasia da sua Idade d’Ouro. Nada mais etéreo. E por
isso tão tentador! Paradoxalmente, coube a Ms.Pedante
diagnosticar a atitude de fuga contida na obsessão de Gil pelos 20s. E disse-lho taxativamente: «Nostalgia is denial - denial of the painful present... the name for
this denial is golden age thinking - the erroneous notion that a different time
period is better than the one ones living in - its a flaw in the romantic
imagination of those people who find it difficult to cope with the present.»
Para completar a narrativa, ao jeito circular que W.Allen
aprecia, não são só os contemporâneos a interagir com o passado. Também os
antigos se intrometem, aliás com acerto, no séc. XXI. Assim acontece com
Hemingway, que dá um alerta ao jovem escritor, demasiado enlevado nas suas
viagens aos cofres da história para enxergar a vida real. Tocava-lhe um
dia-a-dia desengraçado, numa suite do Hotel Bristol, com uma loira que, em
Paris, torrava os dólares do papá como se estivesse na sua terra. Apenas com a
diferença de mais trânsito cá do que lá (cito a loira), uns antiquários, uns
palácios, umas telas e umas estátuas hiper badaladas… Quanto ao mais: piscinas
de hotel e room service iguais aos dos States.
Outra intromissão divertida vem descrita num calhamaço
bolorento, que Gil desencantou nas margens do Sena. Quem decifra a blague – ao protagonista e aos
espectadores– é a guia do Museu Rodin (Carla Bruni), traduzindo ao
norte-americano a passagem onde entra o seu nome, referido por uma musa de
Picasso.
Outras constantes em W. Allen: só por coincidência, o que
parece, é. Só por casualidade, as relações fáceis e confortáveis resultam. Só
por sorte, as pessoas muito controladoras conseguem agarrar a realidade fugidia
e indomável. Lembrando Camões: «Todo o mundo é composto de mudança», mas em
W.Allen a vida esvai-se à velocidade dos F16. Um aviso que nos pode ser muito
útil, se nos despacharmos.
Maria Zarco
(a preparar o próximo gin tónico,
para daqui a 2 semanas)
_____________
(1)
FICHA TÉCNICA
Título
original:
MIDNIGHT IN
PARIS
Título traduzido
em Portugal:
MEIA-NOITE
EM PARIS
Realização:
Woody Allen
Argumento:
Woody Allen
Produzido por:
Gravior
Productions, Televisió de Catalunya, Mediapro