12 abril 2018

Contos dos dias que correm

Esta Noite em Samarcanda

Uma manhã, o califa de uma grande cidade viu chegar o seu primeiro vizir num estado de grande agitação. Perguntou as razões desta aparente inquietação e o vizir disse-lhe:

- Suplico-te, deixa-me sair desta cidade ainda hoje.

- Porquê?

- Esta manhã, ao atravessar a praça para vir ao palácio, senti que me batiam no ombro. Voltei-me e vi a morte que me olhava fixamente.

- A morte?

- Sim, a morte. Reconheci-a logo, toda vestida de negro com um xaile vermelho. Está cá e olhou para mim para me meter medo. Procura-me, tenho a certeza. Deixa-me sair da cidade neste mesmo instante. Levo o meu melhor cavalo e posso chegar esta noite a Samarcanda.

- Seria mesmo a morte? Tens a certeza? 

- Absoluta. Vi-a como te vejo a ti. Tenho a certeza de que tu és tu e tenho a certeza que ela era ela. Deixa-me partir, peço-te.

O califa, que tinha afecto pelo seu vizir, deixou-o partir. O homem voltou a sua casa, selou o melhor dos seus cavalos e transpôs a galope uma das portas da cidade, em direcção a Samarcanda.

Um pouco mais tarde, o califa, atormentado por um pensamento secreto, decidiu disfarçar-se, como por vezes fazia, e sair do seu palácio. Sozinho, dirigiu-se à grande praça. No meio dos ruídos do mercado, procurou a morte com o olhar e avistou-a, reconheceu-a. O vizir não se tinha enganado. Tratava-se realmente da morte, alta e magra, de negro vestida, o rosto meio dissimulado sob um xaile de algodão vermelho. Ia de um grupo para outro, no mercado, sem que dessem por ela, aflorando com um dedo o ombro do homem que montava a sua tenda, tocando no braço de uma mulher carregada de hortelã, evitando uma criança que corria para ela.

O califa dirigiu-se à morte. Esta reconheceu-o imediatamente, apesar do disfarce, e inclinou-se em sinal de respeito.

- Tenho uma pergunta a fazer-te – disse-lhe o califa, em voz baixa.

- Escuto.

- O meu primeiro vizir é um homem ainda novo, de boa saúde, eficaz e provavelmente honesto. Porque é que esta manhã, quando ele vinha para o palácio, lhe tocaste e o assustaste? Porque o olhaste com um ar ameaçador?

A morte pareceu ligeiramente surpresa e respondeu ao califa:

- Não queria assustá-lo. Não o olhei com ar ameaçador. Simplesmente, quando chocámos por acaso na multidão e o reconheci, não pude esconder o meu espanto, o que ele deve ter tomado por ameaça.

- Espanto porquê? - perguntou o califa.

- Porque – respondeu a morte – não esperava vê-lo aqui. Tenho um encontro com ele esta noite, em Samarcanda.

In Tertúlia de Mentirosos, colectânea de contos compilada por Jean-Claude Carrière

1 comentário:

Anónimo disse...

Sorry, JdB,
Veja em http://rm-dubium.blogspot.pt/ de Rui Macedo
TRATAMENTOS PALIATIVOS (DE BAGDAD A SAMARCANDA).
Em 19 de dezembro de 2013

Pena é o Dr Macedo ter deixado de publicar.

abraço do eo

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