14 março 2016

Das leituras

Fotografia de JMAC, o homem de Azeitão

No seu livro Little did I know - Excerpts from Memory, Stanley Cavell, nascido nos EUA em 1926, afirma o seguinte (tradução livre, minha): "De acordo com um mito, o filósofo tem de ter lido virtualmente tudo, pelo menos toda a filosofia ocidental, em sentido genérico; de acordo com outro mito, o filósofo não lerá virtualmente nada." 

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Janto 5ªfeira passada com dois amigos próximos. Falamos de livros e a pergunta sai-me com um travo de provocação: porque lês o que lês? Devolvida que me é a pergunta, temos três respostas mais ou menos diferentes: 

(i) leio por puro entretenimento; 
(ii) leio como instrumento de formação de carácter;
(iii) leio porque tenho uma curiosidade imensa pela vida; 

Ontem, numa troca de sms, alguém me dizia, respondendo também à pergunta:

(iv) leio para viajar, mas também para encontrar coisas que me descrevem.

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Ontem ainda, pessoa de uma geração abaixo da minha, e que quer (re)assumir um caminho mais religioso para si e para os filhos, foi comigo à missa. O evangelho era o da mulher adúltera, e o prior estava particularmente inspirado na sua conversa connosco. Ouvi / ouvimos com atenção, porque naquele texto da Bíblia está muito mais do que um episódio de uma mulher apanhada em flagrante adultério: ali está a misericórdia, o arrependimento, o direito à privacidade do reconhecimento do pecado, a não exigência aos outros do que não conseguimos nós cumprir.

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Leio ainda Stanley Cavell (em Cities of Words, tradução minha): "O desapontamento de Wittgenstein relativamente ao conhecimento não é o facto de não conseguir ser melhor (por exemplo, imune à dúvida céptica) mas o facto de não nos conseguir fazer melhor do que somos, ou dar-nos paz." 

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Este post não é um retalho de ideias soltas, pois concorre para uma ideia central. Lê-se para viajar, para satisfazer curiosidades, por puro entretenimento, para ter mais informação. Mas também se lê como uma ferramenta para transformação de uma vida - ou simplesmente para a compreensão de uma vida, sendo esta um passo anterior àquela. Ler a Consolação a Márcia, um escrito de Séneca para amparar uma Mãe que perde prematuramente um filho, não é um exercício de auto-flagelação, mas a a procura de uma luz diferente sobre um drama que nos faz equacionar tudo; ler textos sobre o sublime não é uma actividade árida, mas o desejo de perceber o que está para além do que é considerado belo e que nos eleva a um patamar diferente; escutar um leitura bíblica (o texto sobre a mulher adúltera ou o livro de Job) e enquadrá-lo na vida própria é aceitar o desafio da mudança interior, mesmo que a mudança tarde.   

Porque lemos o que lemos? Porque estudamos o que estudamos?

JdB 

1 comentário:

Anónimo disse...

Lemos para vivermos mais vidas do que a nossa.

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