29 dezembro 2010

Moleskine

Natal. Oiço que as pessoas presenteiam menos, reduzem o furor consumista em nome da crise e do verdadeiro espírito natalício, transformado numa romagem comercial na demanda do ouro, talvez, mas seguramente não do incenso e da mirra... No entanto, leio também que se levantaram e transaccionaram centenas de milhões de euros no multibanco, mais 50 milhões do que no ano passado. Dizem-me que são os portugueses a gastar os últimos cartuchos antes que a crise se apodere dos despojos. A mim, afigura-se-me tudo uma espécie de última refeição mas, ao contrário do que é habitual, quem a paga é o condenado que sobe ao cadafalso...

Outro olhar. O evangelho do último Domingo fala da fuga da sagrada família para o Egipto. Durante anos este texto pouco me disse. Mais tarde li o episódio à luz do Evangelho Segundo Jesus Cristo, livro escrito pela pena azeda do ainda não nobelizado Saramago. Eis senão quando uma homilia inspirada me elucida – ou me proporciona um outro olhar - sobre aquele acontecimento. O apelo do padre foi claro: fugi de tudo o que possa perigar a vossa família. O meu raciocínio é muito ingénuo? Olhem...

Notícia. Li ontem, num jornal, que Elton John e o marido foram pais de um rapaz. Questiono-me se não devia integrar esta informação no texto sobre aquilo que ameaça a família. Elton tem 62 anos e o companheiro 48. Como crescerá esta criança, filha de uma barriga de aluguer, e que se chamará Zachary Jackson Levon Furnish-John?

O mundo. Parte da minha vida rege-se por um burguesismo moderno e desinteressante – se bem que confortável. Ontem jantava um resto de perdiz que mão amiga teve a infinita caridade de me ofertar. O telejornal debitava minudências: em Lisboa, uma marca espanhola decidiu chamar os clientes ao primeiro dia de saldos oferecendo-lhes benesses. Requisito? Virem de roupa interior. A perdiz é esplêndida, mas o espectáculo televisivo não deslustra. Não sinto sensualidade, mas curiosidade sobre as boxers, sobre a lingerie - mas também sobre o despreconceito de quem as usa, ao léu, num hall de centro comercial para ganhar umas calças de ganga. Na ponta do meu garfo, num equilíbrio instável, uma castanha cozinhada a preceito. Fico a saber que num outlet em Vila do Conde, dezenas de pessoas esperaram mais de oito horas para receber um vale que poderia ser de apenas 25 euros. Requisito? Traje a rigor, um conceito subjectivo, por aquilo que vi... O soutien e o smoking para tapar uma nudez em crise. Sinto um sobressalto e penso que é a minha senilidade idosa a reagir aos despautérios do tempo. Afinal é apenas um chumbo entalado no peitinho da perdiz...

Televisão. Faço zapping. Na BBC, o fim de uma entrevista com Ingrid Betancourt. Fala de uma passagem da Bíblia em que, depois de atravessado o vale das lágrimas, Deus nos presenteia com a recompensa: não é a glória, a riqueza ou a fama. É o descanso, a paz interior, para usar a sua expressão. Mais tarde, na RTP Memória, depois de no dia de Natal ter revisitado a Música no Coração, delicio-me agora, talvez pela centésima vez, com o Casablanca. O mundo não está perdido, afinal.

Música. O Moleskine despede-se de 2010 com um tom crooner. Bom Ano, para quem me lê.


JdB

7 comentários:

Anónimo disse...

Estava inspirado, JdB! Belos comentários com o toque inconfundível do dono do blogue. Um ano muito bom para si também. A escolha da musica é boa também: we all need to fly with somebody or for something. Bjs. pcp

Ana LA disse...

Bom ano JdB.
Gosto deste vareio de temas e actualidades. Para o ano cá estaremos.

Luísa A. disse...

«Natal», «Notícia» e «O mundo» são três apontamentos que me fazem sentir realmente velha, João, porque tenho de admitir que o problema não seja de um planeta virado do avesso, mas de uma criatura desfasada, que já revela os primeiros sintomas de inadaptação. Felizmente, ainda há «Outro[s] olhar[es]» e há a música.
Um feliz Ano Novo! :-)

fugidia disse...

João, acabei de ler que em Espanha as grávidas, com oito meses de gravidez (para já, digo eu...) estão numa corrida (contra o tempo) aos hospitais (privados, que nos públicos aparentemente tal não é permitido) para darem à luz antes de 01.01.2011.
Para não perderem o cheque de € 2.500,00 que o governo deixará de dar a partir do próximo ano.

Programas televisivos em que os concorrentes fazem o que for necessário para que lhes paguem as facturas, idas em traje formal, ou não, às lojas, corridas à maternidade só me trazem à lembrança a letra da música dos ABBA:
«money, money, money
must be funny
in the rich man’s world»...

O Elton John e o marido (e/ou mulher, who knows) que o digam... ;-)

Anónimo disse...

ÓPTIMO ANO de 2011 também para o João, continuando a inspirar este blog super simpático e aberto como é o ADEUS. Bjs, MZ

Maf disse...

Seguindo a ordem do post.
Natal »» As transacções via multibanco aumentaram, mas será que as vendas também aumentaram? Os comerciantes queixam-se do contrário. Moral da história: acho que foi o método de pagamento que mudou de um ano para o outro.
Outro Olhar e Noticia (2 em 1) »» Moral da história: fuja do Elton e do seu amiguinho :-)
O Mundo »» Moral da história : não se deve comer perdiz e ver televisão ao mm tempo.
Televisão »» Moral da história: se não se quer perder, traga sempre consigo um comando de televisão, lol
Bom ano para todos. Mestre, um excelente 2011 para si.

arit netoj disse...

Óptimos comentários, uma miscelânia de sol e de sombra... Afinal um reflexo da vida e dos anos que passam.
Obrigada por continuar a pensar alto, sou apreciadora, mais, sou fã mesmo das meditações mais amargas.
Beijinhos e um ano feliz.

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