27 julho 2015

Vai um gin do Peter’s?

De uma povoação remota da Tanzânia, junto à fronteira com Moçambique, vem o talento vitamínico e elegante do pintor Edward Saidi Tingatinga (1932-1972), que transpõe a natureza pujante e colorida de África para a tela, numa harmonia e serenidade espantosas. Nos dois primeiros nomes tem as marcas da sua dupla herança: cristã do lado materno (Edward) e muçulmana do lado paterno (Saidi). Com uma vida atribulada, percorreu diferentes regiões da Tanzânia aproveitando as oportunidades de trabalho que surgiam. Acabou por ter uma carreira artística muito breve, de apenas 4 anos. Apesar disso, a sua obra marcou a arte do continente, parecendo inspirar-se nos murais africanos primitivos. Por isso, é simultaneamente tão nova e tão expectável.  
Nos anos 50, mudou-se para o Norte do país, para ir trabalhar numa fazenda agrícola, conseguindo depois tornar-se cozinheiro de um oficial britânico que acabou por o promover a jardineiro. Foi nessa altura que começou a explorar hobbies artísticos, na música e na pintura. Utilizando os resíduos domésticos, como fragmentos cerâmicos e ladrilhos variados, em telas de tamanho portátil, coloridas com tintas de fabrico caseiro, fazia composições naïves e bem humoradas, a representar a vida selvagem da savana. Entre os turistas ocidentais, rapidamente transformou-se num ícone da África dos safaris, ganhando suficiente para se dedicar em exclusivo à arte. Apesar da morte prematura em 1972, baleado pela polícia que o confundiu com um fugitivo, Tingatinga deixou inúmeros seguidores e até imitadores das suas telas, clonadas ad exaustum.  Esse o motivo por que algumas das aqui postadas suscitam dúvidas de autoria.
As paisagens lindas e orgânicas, pacíficas e funcionais caracterizam o seu legado, com um humor refrescante, que alguns críticos sustentam conter sarcasmo e mordacidade. É possível que também pese o olhar de quem observa a sua obra, incrédulo por provir do nativo de um continente dilacerado por guerras, fome e violência de toda a ordem. Até os predadores que habitam as suas telas sugerem bonomia, em poses tranquilas e garbosas, mas sem a fantasia infantil de se verem reduzidos a animaizinhos de estimação negando-lhes a evidente indomabilidade. Por isso, o pintor mantém-lhes o olhar faiscante de felinos, apenas depurando-os da agressividade mais primária e sanguinária. Aliás, não é pouco pousarem (quase sempre) sem herbívoros por perto, a salvo de possíveis tentações. Acima de tudo, adivinha-se-lhes nobreza de carácter. Neles e nas suas presas. Até as plantas verdejantes, que serpenteiam festivamente por toda a arte de Edward T., ajudam à animação.    
Atribuível a Tingatinga, apesar da multidão de imitadores do seu estilo.

Um olhar tão confiante e entusiasmado sobre o Continente Verde é, só por si, um balão de oxigénio, tanto mais meritório quanto Tingatinga assistiu em directo ao dolorosíssimo processo de descolonização de inúmeros países da África austral, marcados por banhos de sangue e crueldades tremendas. De onde lhe veio então tamanha confiança, como se tivesse vivido num jardim paradisíaco onde reinasse a felicidade suprema? Terá estado no mesmo planeta problemático do século XX? É verdade que a figura humana rareia, o que não será destituído de significado. 
Ainda assim, a regra acaba por ser confirmada pela melhor excepção, com as silhuetas lindas das mulheres africanas, invulgarmente etéreas na perspectiva de Edward T. Bem em destaque, dispensam os adornos decorativos da vegetação, como se o céu fosse o único cenário à altura da sua passagem.

Na mesma linha, são raros, mas não menos bonitos, os vestígios da presença humana na paisagem alegre do continente, com habitações maravilhosamente integradas na natureza, dando espaço à fulgurância da flora circundante, sem se imporem minimamente.  

No estilo de Saidi

O belo é uma constante na sua obra, ilustrado através das múltiplas facetas da vida natural sempre em composições onde até os cardumes de peixes acinzentados brilham em movimentos coreográficos que lembram os passos de dança na natação sincronizada. Sim, tudo se torna estético depois de cruzar o olhar e o pincel do pintor apaixonado pelo reino vegetal e animal de África. Significativamente, os sites com as suas pinturas auto-intitulam-se  another-africa, inside-african-art, etc. 
Muito curiosa a paleta de cores híper comedida e imprevista num africano rodeado pelo colorido intenso dos trajes dos seus conterrâneos, que são verdadeiras explosões cromáticas, transpostas em versão bem menos garrida por Edward T. De facto, reduz o espalhafato mas não o efeito cénico, esse sempre ao rubro.

Uma das grandes ironias de Tingatinga ressalta numa natureza-morta à base de frutos, formando um conjunto bastante vistoso, apesar do espectro de tons ser pobre. Simplesmente, a escolha cirúrgica de tonalidades contrastantes surte o efeito oposto. Será possível aplicar à tela o nome técnico de natureza-morta? É um facto que a expressão inglesa still  live é bastante mais feliz para designar este tipo de composições, embora no caso de Edward T. também seja de difícil aplicação, de tal modo a sua arte está impregnada de vida. Só não tem violência nem carga negativa.

Mesmo a variedade que sobressai nas suas obras tem qualquer coisa de ilusório, pois o pintor recorre frequentemente à repetição de elementos, tendendo para uma padronização que confere harmonia ao todo. A partir de um jogo de formas hábil consegue sugerir uma diversidade e um movimento que estão longe de ser reais. A colocação certeira de cada elemento (em geral, bichos) forma uma trama coerente, deixando de se percepcionar individualmente cada parcela do todo. Por isso, a maioria dos quadros de Tingatinga é comparável à polifonia dos coros musicais, valendo o resultado pela pluralidade de vozes bem orquestradas, não fazendo qualquer sentido dissociá-las umas das outras. É o caso dos peixes ou até das girafas na tela em baixo à esquerda.

Outra invulgaridade deste artista é a superabundância de fundos escuros, parecendo esquivar-se ao sol abrasador daquelas paragens.

Parece antes preferir os poentes e o pousio nocturno da selva, embora a plena actividade animal que pinta não se coadune com o sossego das noites na savana. De facto, trata-se de um efeito decorativo, onde o cenário escuro proporciona maior realce e brilho ao que se exibe em primeiro plano. Aplicando a mesma lógica, noutros casos optou por fundos laranja fogo, a coincidir com os tons do entardecer, dando maior vivacidade aos animais de listas em preto-e-branco. E ainda lhes aguçou o olhar tingindo o branco leitoso da esclerótica ocular de laranja na tela à esquerda, ou de encarnado nos antílopes ao centro, ou de amarelos quentes na galinhola da direita.
Telas atribuíveis a Edward T.

Predomina no seu portfolio uma suavidade próxima do silêncio, como se espreitássemos os primeiros segundos da criação, quando as diferentes espécies se começaram a passear pela terra para se darem a conhecer uns aos outros, sem a rotina sobressaltada da sobrevivência que, posteriormente, se terá instalado. Estaria a vida animal a despontar no planeta, querendo cada qual confirmar presença no reino dos vivos, quase numa exibição cordata, de acordo com o relato do Génesis?   
Na tela da esquerda, surgem ao fundo as neves eternas do Kilimanjaro.

 A concluir esta exposição virtual a telas que alguns denominam, sardonicamente, por arte de aeroporto, uma nota de humor e boa disposição com feras em acrobacias improváveis e q.b. divertidas. Pelo menos, poderá ajudar quem ainda não está de férias a ganhar fôlego para o arranque, depois do fim-de-semana.


Maria Zarco

(a  preparar o próximo gin tónico, para daqui a 2 semanas)

1 comentário:

Anónimo disse...

Obrigado pela excelente informação. Desconhecia Edward Saidi Tingatinga.
O post brilha por dois motivos:
1 — A sensibilidade, a poesia, do texto.
2 — As imagens.

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