10 maio 2012

Moleskine


Educação, sempre. Imprescindível a simpatia. Talvez simplicidade, que não deve confundir-se com simplismo. A certeza de que um apelido ou um berço nos dão deveres, mais do que direitos. Com o mesmo à-vontade comer codornizes no seu sarcófago com um príncipe e migas gatas com um trabalhador do campo.

Matilde explica tudo isto a uma sobrinha usando uma voz serena sem ser paternalista, convicta sem ser irredutível. Compõe o vinco de umas calças elegantes, para que fique rigorosamente paralelo à canela,  e roda no dedo um bonito anel que lhe foi oferecido por uma avó, tinha ela 18 anos. Agora, passados quase 40, a jóia mantém a sua elegância discreta, sinal da intemporalidade de algumas coisas. E continua, para explicar o que é, no seu entendimento, frisa, ser-se educado e, além disso, ser-se fino, um conceito que ela usa como o cardamomo – com parcimónia. 

Uma vida discreta, sem alardes do que se tem ou faz. O pudor na revelação pública da sua vida, mantendo dentro de casa o que deve estar dentro de casa. Saudar quem está à sua frente segundo os hábitos do outro. Não evidenciar a diferença que diminui. Ser elogioso sem ser bajulador. Perceber a diferença entre requinte e ostentação, porque até na humildade se pode ser requintado. Vestir-se sobriamente, o que não é contraditório com elegância. O tom de voz certo e uma linguagem adequada, que não ofenda pela vulgaridade nem pela sobranceria.

Matilde é dona de um antiquário que herdou e desenvolveu. Quando está na loja recebe qualquer cliente com uma amabilidade e um sorriso genuínos. Usa o mesmo tom de voz para explicar quem eram os bons gravadores, a impossibilidade de se encontrar uma Nossa Senhora de Fátima do século XVIII, o menor valor dos retratos (mesmo sendo um Columbano), ou que não há tamanho abaixo quando se fala de vasos chineses da dinastia Ming... A vida corre-lhe bem, financeiramente desafogada, socialmente rica, dentro dos parâmetros que ela tão claramente – sem notas de imposição – explicou à sobrinha.

Uma vez por mês Matilde agarra no carro – um Mercedes discreto, preto – e segue para fora de Lisboa. A empregada da loja informa que a Sra. D. Matilde foi tratar de assuntos profissionais e por aí se fica, até porque não sabe mais. No entanto, foi-lhe explicado o valor da sobriedade comercial, porque a aquisição de antiguidades é feita, muitas vezes, à custa da debilidade financeira de famílias que acabaram em apartamentos modestos, cartões de crédito sucessivos, noites agarradas ao ferro, memórias de palacetes e criadagem emolduradas em casquinha nacional. Matilde é recatada, porque ser-se educado é não comentar  a desgraça alheia.

Ao fim do primeiro dia Matilde está em Toxofal de Baixo, nas proximidades da Lourinhã. Estaciona o carro na garagem de um prédio e entra discretamente, resguardada por trás de uns óculos escuros de marca. Utiliza o elevador para subir ao 3º esquerdo, toca à campainha que imita um gongo oriental e entra, depois de se assegurar que não foi vista. Dez minutos depois está vestida com uns hot pants vermelho sanguíneo, um top cor-de-rosa com um decote de uma generosidade que já não se usa, e um anel grande numas unhas tingidas de azul turquesa. Faz amor com Abílio, um empregado de café que ostenta um bigode preto fino, umas patilhas bem aparadas e um problema sério de joanetes. Matilde grita muito, porque gosta de verbalizar o prazer que recebe. Depois, deitada na cama e revelando uma nudez onde a expressão pudor não tem lugar definido, responde a perguntas que ela própria fez, para uma revista social (O Toxofal Elegante) que ela inventou. O Abílio é o homem da minha vida; agora sim, estou feliz; estamos a amadurecer a nossa relação mas há uma cumplicidade muito grande; o Abílio ajuda muito em casa, cozinha com muita paixão..

O sol põe-se em Toxofal de Baixo. Matilde veste um fato de treino, calça umas havaianas e avança para a cozinha, porque é dia de bola e alguém tem de lavar a loiça da semana. Restam-lhe dois dias, e há tanto amor para fazer... Não sabe se voltará mais, porque há um presságio de morte na sua relação com Abílio. Tudo começou com umas aulas de kuduro nos bombeiros locais e com a professora, vinda expressamente  de Luanda, cuja generosidade de nádegas levou o empregado de café a revirar os olhos. E isso, no fundo, é o princípio da lascívia e da traição. 

A menina pode ter fetiches à vontade. Não pode é falar neles, porque as pessoas finas não falam dessas coisas...

JdB

1 comentário:

Ana CC disse...

A minha mãe que era uma pessoa discreta, muito sóbria e suave, tinha uma olhar esverdeado e doce que sossegava e transmitia segurança. Nunca a vi despencar, nem perder o controlo, mas sempre me disse que deveríamos desconfiar de quem, num tom sistemáticamente perfeito e seráfico, não tem um toque dissonante.

Sabes porque? a perfeição não existe e, acima de tudo, irrita-me, dizia.

Esta Matilde é um MUST e a sua escrita delicia-me, apesar do excesso dos joanetes que me fizeram sentir nojo do Abílio.

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